10 Considerações sobre O pacto da água, de Abraham Verghese ou porque é mais fácil controlar um elefante do que controlar o desejo...

O blog Listas Literária leu O pacto da água, de Abraham Verghese publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou um pouco mais para este livro que levou-nos diretamente à Índia, confira:

1 - Um tijolão que flui como as águas dos rios e das monções que inundam suas páginas, assim poderíamos começar nossa escrita sobre esta narrativa extremamente envolvente e que nos carrega por uma Índia nem sempre esperada. O livro é uma dessas publicações capazes de fazer com que o leitor submerja em seu ambiente e em sua cultura, e está dentre aquelas estórias que nos fazem viajar junto com suas páginas; isso para além do centro de sua narrativa, não menos interessante, a saga de uma família ao sul da Índia na região de Kerala que ao mesmo tempo revela-se uma narrativa familiar, percorre os contextos históricos de um país múltiplo e complexo;

2 - O livro enquanto saga percorre o período de 1900 a 1977 centrado na instituição familiar que se inicia com a força e a perseverança de Grande Amachi, que de menina casa às cegas com um homem mais velho, torna-se uma matriarca respeitada e admirada por toda Parambil. O arco narrativo de Grande Amachi poderíamos dizer o principal, que será partilhado com o arco da curiosa história de Digby, médico irlandês que vai parar na Índia. Aliás, estes dois arcos ocorrendo paralelamente no decorrer das partes do livro de modo que encontram-se em certo momento que já não pensamos mais que se encontrarão, mais um dos tantos momentos de descobertas e mudanças que a narrativa nos propicia, outra de suas características que fazem-na na verdade bastante vibrante;

3 - Aliás, sagas familiares e pessoais tendem a ser vibrantes e permeadas de reviravoltas, mas como grita o meme, em algumas cenas, puta que pariu, né Abraham Verghese. Há no desenrolar da narrativa uma série de cenas que nos pegam desprevenidos, algumas delas relacionadas à Condição, leia-se aqui espécie de maldição, na arvore genealógica do marido de Grande Amachi, uma família marcada por estranhos afogamentos. Essa "maldição" nos entrega durante a leitura momentos de suspensão que realmente nos tiram o fôlego e somam-se aos momentos em que os internos dos indivíduos em seus silêncios solitários prenhes de desejo carregam-nos por caminhos de muita dor, elemento clássico das tragédias, estas que se avolumam no romance;

4 - O que pretendemos dizer com isso é que em seus momentos mais dramáticos o romance nos surpreende com reviravoltas e descobertas que vão aos poucos tecendo o fio narrativo por qual suas personagens se movem. E não falta drama na leitura, entretanto, trazido com certos ares de poesia, pois de algum modo há muita ternura nas complexidades humanas que emanam de suas personagens. Mesmo em seus momentos maus tristes, a ternura no olhar de certo modo procura entender toda essa louca existência humana que há tempos tenta equilibrar-se entre fé e razão;

5 - E aqui adentramos uma questão relevante da narrativa. O livro vive essa busca pelo equilíbrio entre fé, espiritualidade e a ciência. Essa faca de dois gumes parece-nos intensificar-se no trecho final saga, quando Mariamma, neta de Grande Amachi, vai estudar medicina buscando uma solução científica e médica para a questão da Condição que tanto amedrontou gerações de sua família. Mesmo encontrando soluções científicas (médicas) para a questão, a busca pelo mistério e pela fé, mesmo naquelas personagens que abandonaram suas crenças, persiste. Não seria exagero dizer que o livro carregue fortemente este dilema que busca por um Deus. Em certo ponto até mesmo desconfiamos de certos ares deterministas na obra, atirando ao divino os caminhos abertos para suas personagens. Nesse sentido é um livro marcado fortemente pela religiosidade intensificadas inclusive naqueles personagens descrentes;

6 - E quanto religiosidade uma questão relevante e que nos leva a uma Índia inesperada. Quando pensamos na Índia o cristianismo não nos vem imediatamente à lembrança. Mas é a uma Índia cristã que somos levados. A Parambil de O pacto da água é uma comunidade cristã e tem em Grande Amachi uma de suas fiéis mais devotas. Ou seja, à Índia que vamos neste livro é uma Índia cristã, mas cuja cultura politeísta convive e vive em convergências com a comunidade cristã do lugar. Esse é outro elemento interessante da narrativa, observarmos as convergências míticas e os sincretismos que se constituem para fazer resistir e sobreviver a fé;

7 - Todavia, ainda que uma inesperada Índia cristão, uma Índia com toda a sua riqueza cultural, um destaque especial para a culinária que tem papel relevante na narrativa. Na verdade somos transportados no tempo e no espaço a uma comunidade que tal como a família de Grande Amachi desperta neste grande mundo e carregando consigo todas as contradições de um país em movimento, vide especialmente o olhar lançado para as castas que dividem a sociedade e que tem no pulayar Joppan e seu pai Shamuel um interessante elemento de reflexão do romance a partir do contraste de ambos. Ou seja, trata-se de um livro que nos traz um pouco dessa cultura indiana tão cheia de nuances;

8 - Além disso, não podemos esquecer que em grande parte temos aqui também um romance histórico. De algum modo lendo a saga de Grande Amachi recordava um pouco de romances como os de O tempo e o vento, já que suas narrativas para além das jornadas individuais e coletivas que narram, as unem intrinsicamente à história de suas nações ou espaços que habitam. E mesmo que sempre mantenhamos nossos olhos ao que acontece no entorno de seus protagonistas o fundo histórico nunca nos deixa esquecer que ele está ali. Perpassamos assim por uma Índia colonial e cuja independência chega apenas na esteira da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, a narração demonstra o incômodo de uma nação sob ocupação e cujo fundo histórico chegam às menções, primeiramente pelas páginas do jornal local e depois pelas ondas do rádio de Philipose. Temos aqui também uma espécie de romance histórico já que a saga familiar acompanha as mudanças que vão ocorrendo na Índia. Parambil não está alheia à história;

9 - Todos esses elementos fazem do livro, a despeito de seu longo volume, uma leitura voraz. Mesmo que por vezes recaia a certos misticismos e dê forte relevância à mitologia, a despeito de seus protagonistas que andam pela ciência, o romance é eficiente ao devastar a experiência humana marcada por desejos retraídos e segredos que não necessariamente são mantidos por maldade. Aliás, tanto seu narrador, um narrador onisciente que pro vezes nos dá flashes do futuro, quanto seus personagens, são destes capazes de marcar e de imprimirem em seus leitores ares de realidade capazes de torná-los "reais";

10 - Enfim, O pacto da água é uma leitura envolvente e emocionante, acima de tudo. A saga que nos narra sustenta-se em personagens construídos com muito primor, especialmente pelas ambiguidades e pelas questões essencialmente humanas, isso no sentido da busca constante por tentar entender algo em meio ao caos que é a vida. Um livro que entrega de tudo, a tragédia do amor ao encantamento ao mover-se, ao ser. Uma simbiose entre crenças, ciência e natureza, elementos que nem sempre se tocam. Um ótimo romance, mesmo quando o achamos ingênuo ou "crente" demasiadamente. Uma leitura que fixa-se em nossa memória, em suma, uma viagem agradável por suas páginas.

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