10 Considerações sobre Os supridores, de José Falero ou não ponhas sal demais em tua sopa

O Blog Listas Literárias leu Os supridores, de José Falero publicado pela editora Todavia [via àrvore de livros]; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Cria de um dos ecos mais ressonantes em nossa arte e nossa literatura - o naturalismo - Os supridores, de José Falero é narrativa que traz todos os elementos desse naturalismo que parece-nos agregado {a nossa existência desigual e violenta, com isso, congrega-se com outras obras que nas últimas três décadas, pelo menos, têm alertado à expansão da violência e da selvageria em mundos esquecidos onde o Estado é mera lembrança. Assim, o livro soma-se às obras de Ferréz, às letras dos Racionais MC's e mesmo ao Cidade de Deus, de Paulo Lins e deveria soar enquanto alerta do fogo que está aceso e já é a seu modo incêndio, mas um incêndio cujas proporções estão longe de seu pico...

2 - Ocorre que ao ler Os supridores é difícil afastar-se da realidade que o sustenta. Uma voz que mais distante da ficção do que a experiência empírica de uma parte do nosso corpo social invisível, que passa despercebida pelas alienadas classes médias dessa nação e sob o jugo das elites que manipulam todo esse sistema. Digo isso porque no decorrer da leitura é difícil o distanciamento dos relatos que muitas vezes escuto de estudantes, migrantes internos e fugitivos de cenários semelhantes ou os mesmos retratados por Falero. Quem conhece, ao menos um pouco a realidade de quem vive nessas vilas metropolitanas bem o sabe que o que Falero descreve é apenas uma parte desse real medonho a que muitos brasileiros e brasileiras estão forçados a aguentar. Uma realidade, aliás, que já não é mais exclusividade da periferia da capital, pois que dificilmente hoje há uma ou outra cidade em que não se hajam os guetos controlados por pelo crime, onde armas são vistas a olhos vistos e onde o Poder Público ignorar tal situação;

3 -  Vejamos que é difícil adentrar ao livro sem trazer tudo o que leva à literatura de Falero. Uma literatura realista e com a voz dos que passam por tais dilemas. No romance marcado pela linguagem dialetal desses espaços, uma linguagem em processo de construção e defenestrada pela linguagem oficial - inclusive a escola - as pessoas equilibram-se entre resignar-se ou rebelar-se. Enquanto tese, pais tal qual no Naturalismo, há tese na narrativa de Falero, o romance acima de tudo apresenta-nos uma ruptura, o contrato social está esfacelado; o que nos diferencia enquanto sociedade é que para uns, bem o sabem desse esfacelamento, mas enquanto lucrarem, tudo bem. Para outros, os alienados, tal contrato social parece em ordem, com alguns vagabundos que agitam suas vidas tranquilas, mas tudo certo, as instituições funcionam para mantê-los adormecidos, enquanto outros, às vezes sequer compreendem o que é o contrato social, mas seguem na luta, pois o que lhes sobra é sobreviver. Há um outro grupo ainda, percebem o contrato rompido, entendem as escolhas e os pesos que elas carregam, e por saber do contrato ruído rebelam-se a sua forma. Parece-nos que nesse último quadro se enquadra Pedro, o protagonista que junto ao colega Marques, conscientes de que o contrato lhes é mera ilusão, passam a agir sob suas próprias leis;

4 - Essa é a premissa da narrativa. No livro, Pedro um jovem periférico que pelo contato com os livros acaba construindo sua visão de mundo particular, demarcada por ideias marxistas de um lado, e pelo desejo íntimo de participar da encenação social de outro, convence a amigos a adentrarem ao tráfico vendendo maconha nas vilas porto-alegrenses. Pedro e Marques que trabalham como supridores em uma rede de supermercados, aos poucos então vão tendo acesso ao mundo do consumo e das oportunidades, vão temperando suas sopas existenciais, mas como diz o título e a metáfora ao final do livro, a dose de sal é uma questão indispensável nesse preparo;

5 - O que contudo o Véio não explica a Pedro em sua metáfora da sopa é que, dado o primeiro passo, será inevitável exagerar no sal. Revoltado com a falta de pelo menos uma oportunidade e na compreensão do sistema e suas injustiças, não percebe o jovem que suas escolhas desde o princípio vão temperar o caldeirão da violência. Há, nesse sentido certa ingenuidade de Pedro em cogitar poder viver sob suas próprias leis, sendo um traficante legal e diferenciado. Isso tudo poderia funcionar se ele por acaso fosse uma ilha, entretanto, esse não é o caso;

6 - Além disso, a ingenuidade é reforçada no desejo posterior de rebelar-se contra o sistema até somente o ponto deles puderem deixar as sombras e viver dentro do próprio sistema. Uma ingenuidade gigantesca de um pobre garoto que veremos, pensa que ser-lhe-á suficiente apenas garantir a sua oportunidade. Desconhece os complexos mecanismos que agem sobre os contratos de distratos sociais, não calcula as diferentes variáveis envoltas no processo. Tivesse lido Cidade de deus, talvez Pedro percebesse que a escolha de certo modo carrega a ideia do ouro de tolo. Todos, no romance de Lins "esperam pela boa", pela boa que vai lhes libertar, contudo, a liberdade nunca vem. Essa, mais do que uma lição dura, algo que vai corromper o protagonista ao seu máximo, algo que desencadeará a violência máxima ao final da narrativa e que matara a inocência do jovem Pedro e sua trupe;

7 - Aliás, a perda da inocência em seus mais amplos sentidos talvez seja a jornada que se estabeleça no livro. Por mais que Pedro pareça-nos consciente ao seu entorno, é ao fundo um inocente. Julga conhecer o lado mais terrível de seu próprio espaço e tempo [o livro passa-se entre os anos finais da década 00 e primeiros de 10], porém mesmo isso lhe é uma ilusão, perceberá ao final que o preço de tudo que desencadeou será muito maior, mais duro, bem mais sinistro e tão real quanto o que ocorre diariamente pelas vielas gaúchas hoje em dia;

8 - Nesse sentido, Falero além de narrar o sonho um tanto quixotesco desses dois supridores que "foram com o Diabo ter", que só queriam ter chance. de viver sob a ótica da ilusão, fala-nos também das estruturas e da ascensão do crime no Rio Grande do Sul. No livro, ainda que timidamente podemos perceber a presença das facções criminosas, a luta violenta por espaço e território que foi conflagrada nos últimos anos no estado. Enquanto cenário, infelizmente o que Falero narra-nos é um real tão real quanto os corpos que se empilham [ou partes desses corpos]; Só esse ano de 2023, algumas cabeças foram despojadas à luz do dia nas ruas de Porto Alegre como demonstração de força e poder. Vivemos uma guerra que através desse romance pode ser antevista, mas não em seu real tamanho. É um quadro dramático e sinistro que vem se naturalizando cada vez mais entre nós e cuja herança ser-nos-á trágica;

9 - E aí talvez resida algumas ingenuidades do próprio livro. Trata-se de uma alerta e de um grito à realidade de muitos de nós, porém, tememos o quanto de fato tal mensagem assim o seja compreendida, o quanto a ação desencadeada na narrativa não apenas soará a alguns leitores enquanto uma narrativa de ação distante? Ou às improváveis referências a Marx, o quanto isso não versará contra o próprio chamado? O próprio Pedro perde-se em seus sonhos socialistas - ainda que o mantenha vivo na estrutura de seu grupo - ao fim revelando-se uma espécie de Bernard Marx cujo incomodo com sua estrutura é o fato de não ser integrado à estrutura social de seu admirável mundo novo que propriamente na construção de um novo modelo social. Pedro no fim parece tão somente querer partilhar o mundo que realmente mudá-lo - ainda que o diga isso -; Além disso, a ingenuidade no livro ainda pode ser vista no improvável desfecho de Pedro que  aqui distancia-se com o visto no paralelo real. As últimas páginas são um tanto quanto improváveis visto ao que Pedro é levado, mais improvável ainda considerando que o sal posto em sua própria sopa no auge da violência inviabiliza a paz esteja onde tiver;

10 - Enfim. Os supridores é narrativa potente com sua marcas naturalistas. Tem o acerto de trazer à luz um cenário que infelizmente é cada vez mais reconhecível pelos gaúchos, um cenário de esquecimento cuja lembrança vem sendo trazida de volta por meio de metralhadoras, revólveres, cabeças cortadas e uma violência indescritível que fertiliza em campo cujo contrato social está ruído. E talvez aí resida o problema de nossos dias, o livro como outra sobras semelhantes revelam, denunciam esgarçam a destruição do contrato social. Suas personagens sucumbem a essa quebra, sem contrato social, que cada qual faça sua lei. Há certo acerto nesse olhar, entretanto aos que sonham com rumos civilizatórios os ruídos no contrato social não só estão inviabilizando o futuro como nos jogando barbárie e a violência. Mas essa não é uma culpa que deva cair a Pedro, Marques e suas escolhas, há os que lucram, há os que riem dessa ruptura pois seguem protegidos pelo muro médio que jura ser o próprio círculo. Enquanto isso corpos se empilham, corpos outros... por enquanto o êxito dos que desejam que o contrato social permaneça rompido com ilusões de normalidade é que nem todos os corpos estejam morrendo, pois o sistema da opressão se protege, e o que talvez Os supridores não consiga alcançar ao todo é que escapar desse jugo de opressão está se tornando uma impossibilidade. 

:: + na Amazon ::




Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem