O Blog Listas Literárias leu A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, publicado pela editora Companhia das Letras; nesse post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - A arte de produzir efeito sem causa é o quarto livro na cronologia de Lourenço Mutarelli e o seu primeiro publicado originalmente pela Companhia das Letras. E o livro é Mutarelli na veia, uma pancada incômoda e indigesta sobre a degradação, a degradação máxima, no caso representada pela morte da linguagem e a radicalização da paranoia. Não sei se há alguma obra do autor que não seja incômoda, mas essa traz o incômodo em seu ápice, certamente;
2 - No romance temos Junior, um homem típico da classe média brasileira que em seu processo de fuga volta ao colo do pai, no caso o apartamento, onde Sênior divide a moradia com uma estudante de arte. Como de praxe nas personagens mutarellianas a degradação é um processo em acontecimento, cada vez mais radical e intransponível ao passo em que a mente de Junior se deteriora todos a sua volta passam a correr risco;
3 - Não a toa, quando olhamos a página do livro no Skoob encontramos dezenas de abandonos da leitura. Além disso, por parte de alguns leitores há a queixa da incompletude, do caos, das pontas soltas, das faltas de explicações de Mutarelli, justamente aquilo que se constitui o grande valor do romance. Tudo é caos, tudo é absurdo, a literatura se reconhece como literatura quando se explica, talvez Mutarelli vá além da literatura pois quem disse que precisa-se atar pontas? explicar? O que faz é de certa forma a arte de produzir efeito, muitos efeitos sucedem aos leitores ao entorno da obra, agora não sabemos se é sem causa;
4 - Mas antes de tratarmos de alguns símbolos e signos comuns a Mutarelli, convém dizer que pelo fato de lermos sua mais recente narrativa, O livro dos mortos (2022), antes de lermos este romance, surpreendeu-nos como esta obra reverbera em seu livro testamentário mais recente. Os ecos de A arte de produzir efeito sem causa nos parecem muito fortes em O livro dos mortos. Mas feita essa pequena digressão, voltemos à narrativa em análise;
5 - A degradação aqui é plena. Marcada pela paranoia, tudo rui na vida de Júnior, cuja mente adentra uma espiral de paranoia levando-o às últimas consequências. Uma paranoia abastecida com os pacotes anônimos que lhe chegam sem remetente. Nos pacotes referências a William Burroughs, autor que opera muita influência também no autor Mutarelli. No caso de Júnior, o mistério envolvendo as paranoias e o assassinato cometido pelo escritor norte-americano, o levam às raias da loucura, fixação que ultrapassa a capacidade da palavras e atira-o a significações complexa e ininteligíveis por meio de gráficos e códigos que faziam sentido só a ele. Curiosamente, a fixação em Burroughs será transmitida à Bruna, a estudante;
6 - Na loucura que então se instala, o leitor passa a sentir o incômodo de seguir o foco narrativo que persegue a confusa e afásica mente de Júnior. A degradação em uma escalada forte, ao final, torna-se ainda mais impactante, há tensão e essa tensão salta para fora das páginas. A violência, a claustrofobia e a insanidade aderem à pele do leitor, pois a jornada de Júnior nos é convincente;
7 - Uma jornada infernal; para Mutarelli, parece-nos tudo resume-se ao inferno. Aliás, a mãe deste Júnior, assim como o Júnior de O livro dos mortos gosta dos demônios, compreensão de Júnior que amplia suas paranoias. Na degradação de sua lucidez e do próprio linguagem, ao cabo Júnior já nem mesmo sabe se ele é o diabo, se Sênior é o diabo, ele apenas espera, espera pelas balas do 38 guardado no armário;
8 - Aliás, a violência nesse livro, embora talvez um dos com menos ação na bibliografia do autor, é das mais tensas, talvez pelas promessas e pelo estado de medo que se cria entre aqueles que habitam o mundo de Júnior, mas também aqueles que leem esse mundo. Há um terror implícito e prometido que angustia, mais uma vez, que produz seu efeito de tal modo que parece-nos a narrativa do autor que mais flerta com o horror;
9 - Não podemos deixar ainda de destacar como é comum a Mutarelli o aspecto da discussão da linguagem. A linguagem aqui posta em todas as suas possibilidades, não só o poder das palavras ou da falta delas, mas das imagens, dos códigos e dos signos que ao cabo nós mesmos inventamos. Somos criadores da linguagem independentemente do sentido ou dos códigos provocativos que estabelecem. O livro é nesse sentido mais uma prova da ousadia de Mutarelli em seus jogos de linguagem, não só com seus gráficos alucinados trazidos à narrativa, às invenções ou a coragem de intercalaram nos entremeios da prosa códigos do almoxarifado de um banco de dados da loja de auto-peças. Não uma provocação gratuita, já que por meio dele podemos até mesmo os níveis de lucidez do protagonista;
10 - Enfim, A arte de produzir efeito sem causa é o que é, uma pancada. Lourenço Mutarelli em seu auge e com todos os signos que tem se proposto a criar seu mundo absurdo. Uma prova de que o autor não veio para explicar, essa não é sua ideia - tampouco a ideia dos autores que contemplam o drama humano em seu nível máximo de consciência. Olhar para Júnior é olhar para a miséria humana e tal qual o final - que para muitos leitores pode carecer de explicações - é perceber o que se espera logo a frente...