10 Considerações sobre Enclausurado, de Ian McEwan ou como olhar para o futuro

 Blog Listas Literárias leu Enclausurado, de Ian McEwan publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Enclausurado é uma destas obras raras com a qual nos deparamos de tempo em tempo. Um exemplo de feitio literário capaz de deleitar o mais cético dos leituras numa narrativa genial, divertida, mas que ao mesmo tempo nos esboça um cenário de perplexidade e angústia numa leitura de mundo capaz de denunciar as mazelas desta nossa contemporaneidade;

2 - Contudo, antes de falarmos mais sobre essa precisa leitura e reflexão acerca de nossa sociedade contemporânea, seria impossível não iniciar abordando a peculiaridade do narrador deste romance, que embora o objetivo da escolha provavelmente seja o mesmo de Machado por um defunto-autor Brás Cubas, aqui McEwan percorre o caminho contrário buscando seu distanciamento narrativo dentro do útero de uma mãe, digna personagem dos dramas shakespearianos. E essa é uma solução magistral;

3 - Diante um mundo que parece retroceder é assaz genial que o autor coloque a narração na voz de um feto, quem melhor para observar o presente sem perder o olhar no futuro? Além disso a escolha, assim como Brás, é ideal para o distanciamento do autor, e no caso do de McEwan, inclusive a possibilidade de iniciarmos um debate sobre qual dos narradores poderia estar mais distanciado e liberto. Isso, aliás, o próprio feto-narrador acaba legislando e causa própria quando diz "considero-me um inocente, descomprometido com lealdades e obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse registraria apenas meu futuro dia de nascimento.";

4 - E a despeito da condição embrionária em seu sentido literal deste feto-narrador cumpre-se ainda dizer que assim como o defunto-autor, estamos diante de uma obra extremamente realista cujo contrato entre leitor e obra passa imediatamente a considerar a condição do narrador tão somente como narrador sendo tragado pela fluência narrativa de uma trama que repete-se ciclicamente num mundo que teima a retomar as velhas - e más - condutas de outrora;

5 - Ademais, ainda sem escapar dos paralelos com Machado, precisa-se dizer doutro elemento compartilhado pelo feto e o defunto, o humor e o sarcasmo de seus olhares para sobre as coisas e os acontecimentos, quiçá uma tentativa de bradar que se levássemos com humor as coisas nesta intermitência em nada e novo nada, talvez, apenas talvez, pudéssemos ser um pouco melhores;

6 - Deixando então agora de lado essa questão primorosa do narrador do romance, ainda que ela não abandone nada do que possamos falar da obra, visto que a escolha permeia cada reflexão, como o fato de que tal narrador é extremamente interessante para uma obra de pretensões a olhar o que virá logo ali a partir do que estamos presenciando no agora. O fato é que talvez precisássemos lembrar - se não todos, mas certamente uma boa quantidade de gente hoje em dia - sobre que mundo estamos construindo e que mundo restará para nosso futuro. E para impulsionar uma reflexão destas a escolha pelo feto-narrador é brilhante porque certamente seria uma das vozes mais apropriadas a elevar-se diante cenários que estão sendo montados no palco chamado Planeta Terra;

7 - Nesse sentido vejamos que o feto-narrador coloca-se no papel de quem deseja ver mais do mundo ao confessar "quero ler até o final Minha História do Século XXI", entretanto não bastasse compartilhar a trama shakespeariana a qual sua família reencena, os sons e as informações que vem do lado de fora assustam-no a tal ponto de cogitar "pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense" momento em que inicia suas especulações sobre o futuro deste século alternando esperança e fatalismo;

8 - E tudo isso porque o drama familiar não passa de primeira camada a sustentar a reflexão do feto-narrador sobre o mundo para o qual está prestes a chegar, que dentre outras preocupações e determinado momento ele reflete sobre algo que o atemoriza "os fantasmas mais virtuosos da Europa - religião, e quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas - arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando a criancinhas a cortarem o pescoço de ursinhos de pelúcia. E aqui estou eu com minha fé doméstica..."

9 -  Ou seja, estamos diante de uma narrativa de fôlego sem igual que os dez itens deste post seriam limitados para sua abordagem, pois tanto em estética quanto relevância e qualidade a obra supera-se em virtudes, sem falar ainda que tal grandiosidade vem posta num corpo quase folhetinesco das narrativas policiais visto que uma leitura superficial inclusive lhe chamaria de thriller em que temos um feto aprisionado em seu útero testemunhando um ardil funesto enquanto o tempo lhe parece mais e mais escasso para qualquer atitude a ser tomada;

10 - Por fim e enfim, não faltam elementos para justificar esta narrativa como uma obra fantástica e de rara sensibilidade. Um destes romances que pode demarcar uma época e um período e que nos coloca assim como o próprio-feto narrador espectadores de diferentes tramas que se desenrolam para além da camada de pele e sangue, espectadores ansiosos, muitas vezes temerosos, mas que se compartilharem do distanciamento do feto-narrador quiçá sobre um pouquinho da esperança com a qual ele ainda tenta observar as coisas, ainda que sem jamais deixar de reconhecer não só a realidade da situação, mas também suas próprias fraquezas. 



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