10 Perguntas inéditas para a escritora Mariângela Souza Ragassi

O Blog Listas Literárias entrevistou a escritora brasileira radicada na Itália Mariângela Souza Ragassi numa conversa que abordou sua estreia na literatura com Memorial das Flores e também questões relacionadas com o mundo dos livros e literatura, confira:


1 - Assim como sua protagonista Flora, você também possui uma relação muito forte com a Itália. Em que vocês se distanciam e se aproximam uma da outra? 

MSR: Tentando olhar com um certo distanciamento para Flora, posso dizer que temos muitas coisas em comum, apesar de termos também muitas diferenças no que diz respeito à experiência de vida. Flora é uma personagem que veio para a Itália quando ainda era bem jovem. Ao chegar aqui, eu já tinha 36 anos, e não vim sozinha, o que criou um processo de adaptação totalmente diferente em termos de responsabilidades e de dificuldades. Ao mesmo tempo em que a família exige mais sacrifícios em alguns aspectos, em outros, dá o suporte necessário para ir adiante. Por outro lado, tanto eu quanto Flora somos descendentes de famílias de origem italiana. Desde criança essa influência é algo muito presente na convivência com os avós e parentes próximos e isso vai plasmando uma espécie de familiaridade imaginária com coisas distantes, uma ideia de pertencer também a um lugar jamais visto antes. Posso afirmar que outro ponto comum entre nós foi chegar a um ponto de ruptura que culminou na decisão de partir. Os motivos foram diferentes, mas a certeza de que era preciso deixar coisas para trás foi a mesma. Quando tomei a decisão de ir embora do meu país, eu estava vivendo um momento de crise em vários níveis. Estava vendo o tempo passar com um certo desespero, com uma sensação de não conseguir realizar nada de consistente profissionalmente, de impotência para modificar aquilo que me perturbava em relação a tudo o que estava acontecendo ao meu redor. Convivia diariamente com o medo da violência, de não conseguir mais reagir racionalmente. Acho que estava, de um certo modo, enlouquecendo. Tudo isso aconteceu há mais ou menos dez anos. Eu não quis focalizar a narrativa na minha experiência pessoal de adaptação ou no reconhecimento da impossibilidade de realizar vários aspectos deste processo, pois o cenário da imigração nesta história funcionou apenas como um intensificador do poder de ação da memória e dos enganos que surgem a partir da ilusão de que certos conceitos se legitimam por terem resistido ao tempo. Outro fator de proximidade é que Flora também é tradutora, profissão que denota uma ligação muito estreita de ambas com a língua italiana. 

2 - Creio que essa seja uma questão de muito interesse a outros autores brasileiros. Sua obra foi publicada no Brasil e em Portugal através da Chiado que tem publicado muitos brasileiros. Conte-nos sua percepção sobre este processo de publicação. 

MSR: Acredito que uma boa parte dos autores iniciantes que tentam ser publicados têm de enfrentar dificuldades parecidas com as que enfrentei. Assim que terminei o romance, entrei em contato com editoras de grande porte e conforme fui obtendo respostas negativas, o que consistiu em muitos meses de espera, passei a fazer contato com editoras de médio e pequeno porte até que optei por uma publicação “conjunta”, ou seja, arcando com 20% das despesas de publicação. Posso afirmar que o pessoal da Chiado apresentou um trabalho muito rápido e competente em termos de dar respostas eficazes às questões que foram surgindo durante o processo, facilitando ao máximo a transação e cumprindo diligentemente tudo o que havia sido acordado. O aspecto negativo de tudo isso foi a divulgação, pois, diferentemente do que acontece em editoras tradicionais, ela fica mais sob a responsabilidade do escritor. Eles propuseram fazer uma sessão de lançamento em Lisboa, na sede da editora, ou então na Itália. Devido aos meus compromissos de trabalho, não pude aceitar nenhuma das duas opções. Enfim, a editora encarregou-se de colocar o livro à venda em algumas livrarias e eu me ocupo da divulgação de modo capilar, ou seja, propondo o livro a pessoas do setor e colocando-me à disposição para dialogar. Tenho planos de ir ao Brasil para realizar algumas atividades voltadas à divulgação do livro. 

3 - Memorial das Flores é uma estreia bastante segura. Quando começa sua intimidade com a literatura? 

 MSR: Desde os tempos do ensino médio, venho participando de iniciativas literárias com poesias, contos e algumas crônicas, tendo alguns textos premiados e publicados em coletâneas. Escrever sempre foi algo constante em minha vida. Apesar desta minha inclinação para as letras, explorei outras áreas e me dediquei às artes plásticas, profissão que exerci até deixar o Brasil. Na Itália, tive que dar prioridade ao meu processo de adaptação e, não encontrando um modo de conciliar sobrevivência com vocação, deixei de lado tanto a literatura quanto a arte e só depois de oito anos encontrei espaço para voltar a escrever criativamente e o resultado foi este romance. Acredito que a segurança seja decorrente de uma necessidade absoluta de retomar uma atividade que mesmo em estado latente foi amadurecendo com a aquisição de novas experiências. 

4 - Aproveitando mais uma vez a natureza multinacional do livro (afinal, a obra é publicada em Portugal, Brasil, e você mora na Itália) como você trabalha questões como divulgação e contato com leitores brasileiros? 

MSR: Não estar no país é um problema neste sentido? Sim, é um problema, pois este livro direciona-se sobretudo aos leitores brasileiros e eu teria imenso prazer em poder estar em contato direto com os leitores. Faço tudo à distância e sei que não é o modo ideal. Mas tive que optar por isso. Quem sabe em um futuro próximo eu tenha a possibilidade de me dedicar exclusivamente à literatura e as coisas possam ser conduzidas de outra maneira. 

5 - Aliás, como tem sido o retorno dos leitores e a repercussão da obra no Brasil e em Portugal? 

O livro foi publicado em outubro e tive a oportunidade de receber respostas bem positivas de leitores brasileiros, o que é muito encorajador. Em Portugal, minha rede de contatos é menor, mas estou trabalhando no sentido de ampliá-la. Gostaria muito de traduzir o livro para o italiano e para outras línguas, mas esse é um passo que só poderá ser dado mais adiante. 

6 - Sua obra trata de segredos familiares e assuntos que geralmente são deixados à margem. As famílias tendem a naturalmente ser um grande poço de ruídos e desencantos, como no caso da família de Flora? 

 MSR: Considero que as famílias, mesmo as mais “normais” são repletas de detalhes interessantes, pois são o ambiente no qual se vive a intimidade, e é nessa condição que as relações se aprofundam e que os conflitos e as diferenças se intensificam criando tensões que podem levar o indivíduo a desenvolver comportamentos extremos. Na nossa educação são abordados vários temas que incluem todas as regras e limites que um indivíduo deve respeitar para viver em sociedade, mas o desenvolvimento emocional e afetivo de um indivíduo no seio da família é uma questão que, muitas vezes, fica nas mãos de pessoas que podem contar apenas com a experiência pessoal e com o próprio instinto. Tudo o que acontece na infância tem uma repercussão enorme e determinante na vida de uma pessoa e falar sobre essas relações, ao meu ver, é tocar em um material extremamente rico e surpreendente. 

7 - Aliás, suas personagens são mulheres, fortes, independentes, e nos principais casos o "amor" parece uma escolha secundária, pois eles primam por suas independências (especialmente a mãe de Flora). Neste sentido, sempre houve uma intenção ideológica? 

MSR: Nesta obra não existe a intenção de propor um modelo de comportamento com a finalidade de propagar e reforçar uma determinada ideologia. As mulheres que retratei são pessoas com prioridades diferentes. Algumas lutam pelo bem-estar da família, outras lutam pela própria independência, outras ainda, para não sucumbir às atrocidades da vida. Por outro lado, considero que seja extremamente necessário nos nossos dias repensar a condição da mulher na sociedade, fazer um balanço das conquistas reais e dos equívocos que ocorreram ao longo das lutas por igualdade de condições. Nós herdamos muitas transformações ocorridas nas últimas décadas, mas ainda é necessário que muitas outras ocorram sem gerar novos preconceitos e padrões absurdos de comportamento. Acredito que só assim seja possível usufruir de relações mais equilibradas entre seres humanos, sem ter de tropeçar a todo momento em incompreensões acerca de questões de gênero. 

8 - Fugindo um pouco da obra, na sua opinião, quais são os grandes gargalos da literatura atualmente? 

 MSR: Eu não seria capaz de fazer uma análise precisa das tendências do mercado literário atual, mas posso afirmar que a literatura assume cada vez mais um papel de entretenimento, equiparada a qualquer outro meio utilizado para proporcionar alguns momentos agradáveis ou de excitação. Isso faz parte do envolvimento que se pode criar entre leitor e obra, mas é apenas um dos aspectos desse envolvimento, existem outros, tais como a capacidade de fornecer um ponto de vista novo a respeito de uma determinada sociedade, de um determinado tempo, conseguir exorcizar neste contexto conflitos e medos, trazer à superfície ideias afogadas na indiferença, conseguir evidenciar contradições e estremecer algumas certezas, abrindo brechas em tudo aquilo que está consolidado. Às vezes, essas coisas causam um certo desconforto, não são divertidas ou excitantes e exigem uma certa disposição e determinação para serem vivenciadas. Para ser sincera, não sei quanto o mercado está disposto a propagar esse tipo de obra nem quanto os leitores estão abertos a elas. 

 9 - Já no campo da leitura, quais foram as obras que te marcaram e que te influenciam como autora? Qual sua relação com a leitura? 

 MSR: Posso dizer que a literatura foi um dos elementos fundamentais na formação da minha identidade. Passei por muitas fases diferentes e todas elas foram marcadas por livros importantes. Para citar alguns autores, deixo o meu agradecimento a Gabriel García Márquez, Milan Kundera, Isabel Allende, Jorge Amado, Machado de Assis, J.D.Salinger, Hermann Hesse, Oriana Fallaci, Melania Mazzucco, Adélia Prado, Marina Colasanti. Mesmo à distância, procuro acompanhar a evolução da produção literária brasileira. Ultimamente tenho lido textos interessantes de autores brasileiros jovens. Embora haja bons talentos e isso contribua para uma revitalização do setor, confesso que percebi uma certa aridez em relação a uma reflexão sobre questões ligadas ao próprio país. Talvez eu tenha sentido isso por estar sedenta de referências que me ajudassem a repensar meu país, e seja simplesmente uma carência muito pessoal. 

10 - Aproveitando sua experiência internacional, como anda a literatura na Itália? Quais tipos de obras têm se destacado por aí? Qual a preferência do público? Difere muito das preferências brasileiras? 

MSR: A Itália, embora não esteja imune aos fenômenos literários mundiais, demonstra um grande apreço pela produção de escritores nacionais. Por exemplo, o primeiro colocado na classificação desta semana é Pape Satan Aleppe, um ensaio de Umberto Eco. Na segunda posição está La Presentazione – 4 secondi, um livro sobre marketing escrito por Don Failla, sucesso mundial de vendas. Da terceira à sétima posição, só autores italianos.

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