O Blog Listas Literárias leu Noites de peste, de Orhan Pamuk publicado pela Companhia das Letras; neste post confira as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou, afinal, o que tem Sherlock Holmes com esta história?
1 - Comecemos pela pergunta retórica na introdução do post sobre o famoso detetive: nada, quer dizer, mais ou menos. Na verdade Sherlock Holmes é presença etérea e ponto de contraste entre ideias do Oriente e do Ocidente presentes numa fronteira um tanto líquida em que situava-se o Império Otomano, entre lá e cá, nem lá nem cá. Ocorre que partindo do pressuposto histórico de gosto de Abdul Hamid aos romances do detetive inglês, as técnicas do detetive deveriam conduzir o pensamento dos protagonistas do romance, o príncipe consorte Doutor Nuri e a princesa Pakize supostamente enviados à ficcional ilha de Mingheria tanto para resolver um assassinato como para controlar a peste que assola a remota ilha. Serão muitas as lembranças e o confronto à técnica de um Holmes que tanto os protagonistas quanto os nacionalistas mingherianos desconhecem na prática, mas lhes serve de símbolo. Todavia, a insistência em Holmes e certo aceno à ideia de um romance policial se desfazem e muitas vezes nos parecem estranhas. Aliás, a leitura imprime em nós sentimentos ambíguos;
2 - Noites de peste é um trabalho ambicioso e surge na esteira da Covid-19 quando velhos dramas e horrores do mundo voltaram a tomar o mundo em escala global. Nesse sentido, a fantasia de romance histórico da narrativa em muitos, mas em muitos momentos mesmo, parece-nos dizer-nos menos do passado e muito mais do presente em que se é escrito a narrativa;
3 - Ocorre que, parece-nos, Pamuk atira seu livro em várias frentes nesta narrativa de experimentos e gênero aparentemente incerto. O romance tem como premissa básica os soturnos acontecimentos numa ilha remota - e ficcional - do Império Otomano em pleno processo de degradação. Ambientado nos primeiros anos do século XX, a narrativa trata de disseminação da peste bubônica pela ilha constituída por culturas divergentes como os muçulmanos, os gregos e os cristãos. Nessa sociedade dividida e ainda sob o jugo otomano, o romance então passa a abordar o florescimento nacionalista na pequena ilha que entre o inferno provocado pela epidemia vê-se também atirada a um jogo dinâmico de poder e contrapoder que levará a ilha à independência. A bem da verdade a narração retoma a uma série de múltiplos e muitas vezes paralelos acontecimentos que culminam no surgimento dessa nação ficcional;
4 - E o livro começa com seu prefácio que de pronto já estabelece a diluição das fronteiras dos gêneros literários, isso, claro, supostamente. "Este é tanto um romance histórico como a história contada em forma de romance" escreve a narradora que apresentar-se-á como historiadora e ao final da narrativa dirá ainda de seus laços com "personagens históricas" do romance. Aliás, podemos afirmar sem grandes problemas que trata-se de um romance a despeito dos deslocamentos que pode querer provocar as primeiras palavras da narradora da obra. Um romance alegórico da queda do Império Otomano e um retrato um tanto quanto é possível retratar das dinâmicas complexas dessa queda a qual a principal personagem histórica é Abdul Hamid, considerado último sultão a governar o Império com poder absoluto. Aliás, o histórico nos chegará mais pelas questões macros e pela busca de representação das disputas nacionalistas emergentes à época, bem como, as disputas étnicas dentro de um Império que já fora glorioso;
5 - Aliás, poderíamos pensar o romance de Pamuk espécie de descrição de como nascem nações, ao menos as nações aparentemente repúblicas do começo do séc. XX. Dentro da perspectiva interna do romance em ser uma obra histórica sobre a independência da ilha de Mingheria, entre acasos e planos, o romance vai aos poucos revelando o nascimento de uma nova nação que a certa altura declara sua própria independência enquanto o caos e o inferno da peste assolam sua população, o que confere à narrativa bastante dinâmica e ação;
6 - Todavia se temos ação e uma narrativa que pretende-se ágil e "histórica", muitas vezes contudo, parece faltar certa identidade mais firma na narrativa. Aí residem nossas ambiguidades sentimentais à trama. Não é, obviamente, um romance histórico. Tampouco trata-se de um romance policial, a despeito de haver uma investigação. A narração parcial, que no fim, inclusive será justificada, por vezes parece-nos não mais que um romance fruto de ideias românticas e ingênuas. Talvez seja pelo fato de a narrador procurar demonstrar intimidade não apenas com a história, mas com o leitor. Há alguma coisa na narração que nos desconectava por certos momentos;
7 - O que não impede-nos de observar questões que consideramos relevantes - bem mais que a ideia de uma investigação criminal. Primeiro a questão de como o romance vai demonstrando o nascimento da independência da ilha e a potência das ideias nacionalistas expressas especialmente pelo vigor do Comandante Kamil. Todavia, o nacionalismo capaz de tratar de suas complexidades, pois não só os desafios iniciais de golpes e contragolpes da nação mingheriana, o próprio fato de o leitor poder questionar a postura de "seus heróis". Ademais, o nacionalismo ali também como um grande desafio, afinal o que é ser mingheriano? o que é ser brasileiro? turco? O que é uma nação? Aliás, as atitudes questionáveis a salvar e manter a ideia nacionalista também virão à baila;
8 - O segundo ponto, talvez o mais impactante ao leitor contemporâneo é todo o drama o qual o Doutor Nuri enfrenta na tentativa de salvar a ilha da peste. A rejeição à ciência e seus métodos chegam não apenas como retrato do passado, mas reflexo de um presente que se construía no presente da escritura do livro em virtude da pandemia. O peso das crenças a se pagar com um preço muito alto como será o pior cenário da ilha no auge das mortes provocadas pela inclemente peste que leva a todos, santos ou não;
9 - E um terceiro ponto relevante que parece-nos implícito a ideia que a história e a política são bestas vorazes a se alimentar de carne e de almas e biografias humanas. A ascensão da fictícia Mingheria à liberdade e a independência é um retrato de tais movimentos e do nascimentos das nações, marcadas todas por sangue, morte, violência e golpes e contragolpes que fazem de qualquer processo revolucionário um trem descarrilado capaz de atropelar a todos. Nisso o livro entrega-nos muitas reviravoltas e o jogo do poder ao passo que a ilha rompe com o Império será intenso e em grande medida devastador, especialmente no momento em que os críticos às medidas de saúde como a quarentena tomam a república mingheriana. Pamuk entrega-nos o poder como uma rede perigosa e mortal de interesses que se movem numa teia complexa de acontecimentos;
10 - Enfim, Noites de peste é uma obra longa como imagina-se de algo que pretende construir, mesmo que ficcionalmente, toda uma nação. Marcado por uma narração parcial, o que pode ser significativo à interpretação do romance, trata-se de uma narrativa de múltiplas frentes, entretanto, talvez, ao leitor contemporâneo menos uma alegoria do passado e sim um retrato alegórico de nossas próprias noites de peste. É praticamente impossível ler o livro sem encontrar muitas vezes ecos de nossas próprias experiências durante a última pandemia, inclusive trançando paralelos com posturas do tipo "e daí, não sou coveiro".