Arre, Sarampião! 10 considerações sobre Água Turva, de Morgana

O Blog Listas Literárias leu Água Turva, de Morgana Kretzmann publicado pela Companhia das Letras. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Tendo como espaço central a área da reserva do Parque do Turvo no Rio Grande do Sul e protagonizado por um trio de personagens femininas fortes, Água Turva vai da ecocrítica à análise politica, numa crítica contundente e espelhada em acontecimentos reconhecíveis de nossa história recente. Tudo isso numa narrativa marcada pela construção de cenas intensas carregadas de ação e muita tensão;

2 - Embora tenhamos falado em um trio de protagonistas, a bem da verdade, a dupla formada por Olga, uma jornalista que é o elo de ligação com o Brasil profundo e os gabinetes políticos, odiada em sua terra natal e Chaya, uma guarda-florestal herdeira da família Sarampião e seu legado, tanto em defesa da natureza quanto das tragédias que lhes acompanham, acabam tendo maior impacto que a renegada Preta, prima de Chaya e raiz profunda de uma série de problemas manipulados e controlados pelo poder central da política;

3 - Nesse sentido, podemos dizer que existem algumas frentes de observação da narrativa. Uma, a relação da família Sarampião e a mitologia construída a partir do desaparecimento do patriarca no Turvo. Esse patriarca, arre, Sarampião será a válvula de realismo mágico que abastece o romance e também fonte de tragédias e desencontros de visões acerca do espaço mítico que é a floresta, no caso da família, marcado à sangue pelas traições e descaminhos que ocorrem. A relação dos Sarampião com o Turvo servirá de certo modo como base de ligação e relação da comunidade local com a reserva;

4 - Nessa relação é que surge a natureza mais complexa e primitiva dos Sarampião com a floresta quando um dissidente caça das onças do lugar e que no tempo do presente se repete na política dos pies rubros, uma comunidade rebelde e - a certo modo criminosa - liderada por Preta, uma das descendentes de Sarampião que acaba estabelecendo sua própria rede de poder associada a teias maiores - e bem mais perigosas;

5 - Aliás, a narrativa, embora sempre conduzida pela cena, pelo movimento, salta pelo tempo em diferentes momentos, indo a diferentes passados na tentativa de demonstrar as raízes problemáticas da relação da cidade de Dourado com o parque, com a política e com os Sarampião. Se essas idas ao passado procuram apresentar aos leitores a saga dos Sarampião e dos Romanos assim como destrinchar a inimizade entre Olga e Chaya, o presente as une diante um problema maior: o projeto de construção de uma hidrelétrica que colocará em risco todo o parque;

6 - Se, por um lado, e em grande parte, a narrativa trata de uma relação transcendental com a floresta e com a natureza, por outro, é importante destacar alguns pontos relevantes de como Kretzmann denuncia ao leitor o funcionamento de uma política que é retrato bastante fiel aos mais graves problemas da política nacional;

7 - Isso porque ao passo que pouco a pouco Olga, assessora de um deputado ambicioso, medíocre e corrupto da Assembleia Legislativa, e Chaya vão ligando os pontos dos inimigos comuns, numa outra camada o leitor pode depreender a rede doentia que sustenta a política nacional interligando assépticos gabinetes parlamentares ao país profundo onde a lógica é outra e onde ainda se tem na violência e no sangue derramado práticas de poder e enriquecimento;

8 - E talvez essa seja a grande virtude da narrativa, a compreensão lúcida de que o gabinete corrupto de Heichma no Rio Grande do Sul é parte de um sistema, uma verdadeira teia que fornece poder e dinheiro, especialmente. Se o livro não aponta, deixa claro que os tentáculos desse monstro habitam Brasília, mais são gigantescos mesmos na base, onde se opera a podridão, onde um gabinete é protetor dos pequenos feudos locais como os políticos de Dourado, que no rincão profundo revelam-se a base dos crimes do deputado, no romance ligados ao meio-ambiente, ao descaminho, ao contrabando entre outros;

9 - Assim, Kretzmann entrega-nos uma alegoria melancólica de uma sociedade marcada por uma política adoecida. Quanto a isso, a despeito das alusões mais óbvias e por vezes caricatas, a autora é exitosa ao passo, que por outro lado demonstra que a questão do parque no livro - mas não só nele, é mais complexa e problemática. Por isso suas personagens embrutecidas e códigos que podem soar estranhos a um habitante urbano surgem com força no romance e nos presenteia em muitas cenas com puro suco dos rincões profundos dessa terra chamada Brasil onde os ponteiros muitas vezes giram de modo distinto;

10 - Enfim, Água Turva é narrativa potente e trabalhada com esmero (só me incomodei mesmo em dizer Polícia Militar em vez de Brigada Militar) que traça uma quadro amplo da lógica dos gabinetes corruptos e ambiciosos desse país ao mesmo tempo que alerta para a força da floresta, dos povos e das comunidades distantes onde o comportamento e as leis muitas vezes agem em compasso distinto. Fala de terras onde conceitos e valores remontam a uma natureza ainda primitiva, mas presente, ao mesmo tempo que por meio de Chaya, Olga e os episódios "mágicos" na narrativa conclamam a uma relação transcendental e não nova, mas antiga, como a natureza: a de respeito e troca justa.

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