10 Considerações sobre Assim na terra como embaixo da terra

O Blog Listas Literárias leu Assim na terra como embaixo da terra, de Ana Paula Maia publicado pela editora Record (via Árvore de Livros); neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Assim na terra como embaixo da terra está naquele limiar entre o conto e a novela, uma narrativa marcada pela violência que constitui os homens, nesse sentido, poder-se-ia dizer que efetivamente os homens, não os homens no sentido da humanidade, pois que nessa narrativa formatada pela testosterona que há séculos resulta em sangue e ódios, os poucos personagens que habitam a narrativa adentram a uma contagem regressiva marcada pela violência constituinte de suas "almas";

2 -  Como o dissemos, a violência é o grande tema da narrativa, entretanto não pense na violência enquanto conjunto de problemas sociais. Na verdade, o olhar de Ana Paula Maia - aliás, uma autora que olha justamente para a violência e sabe descrevê-la como poucos e poucas - volta-se à violência que habita o interior dos homens, que habita seus corpos num processo contínuo de dor e miséria. Nesta obra são todos tomados por essa violência que os atira ao primitivo, a uma selva em que resta ou move-se tão somente pela lei do mais forte, pela lei daquele que é capaz de restar ao final;

3 - Para isso a autor ambienta sua narrativa numa improvável - improvável numa concepção mais realista ainda que seu insólito encontre paralelos em qualquer presídio, grande ou pequeno - prisão, uma colônia retirada do mundo para onde são transferidos presos violentos e cuja transferência mais que uma alteração no sistema prisional indica-lhes o final trágico de suas existências;

4 - Dirigida por Melquíades, nessa colônia penal as coisas não funcionam como normalmente. Pelo olhar, pela conduta e pelas desconfianças aos poucos vamos compreendendo que tudo ali é um gigantesco campo de caça e de que não há homens, apenas animais intramuros, vide inclusive os traçados paralelos aos javalis que é traçado no decorrer da narrativa. Nesse lugar bruto a sociedade não vingou, todos pensam em sobreviver em meio a uma loucura banhada por sangue e morte;

5 - Nesse sentido, vale dizer da tempo histórico que a autora acaba estabelecendo a partir do espaço. Tudo sob aquela terra "maldita" são ossos, relíquias que contam das deformações em nossas constituições sociais. O espaço em que está a colônia penal fora uma antiga fazenda de escravos, desde então amaldiçoada de certo modo que tudo que veio depois terminou em tragédia - a prisão para alguns uma exceção? sob e sobre a terra, contudo, a mesma coisa, homens mortos, a despeito de respirarem ou não;

6 - Entrementes, se por um lado parece-nos que Ana Paula Maia com seu viés de traços naturalista tentar por em discussão essa lógica animalesca que nos constitui, por outro, há o risco de o potencial crítico da narrativa esvair-se por meio da tentação que se dá em observar de modo natural o naturalismo que tece as teias do mundo. Isso porque, a quem deixa de lado a reflexão, a narrativa pode elevar-se como desses westerns clássicos habitados apenas por homens - homens onde os fracos não têm vez -  de olhares atravessados caçando uns aos outros;

7 - E como um insólito western em local não sabido do Brasil, Assim na terra como embaixo da terra entrega muito do gênero. Do estranho - de ares nortistas - índio chamado Bronco Gil (western puro) ao velho cansado da velha condição de vivo, do diretor enlouquecido da colônia penal ao relutante homem obediente às ordens, o agente Taborda, em todos a presença de arquétipos de um faroeste capaz de oferecer muito chumbo, bala, enforcamentos... e como num faroeste é o que temos...

8 - Aliás, veremos que os personagens acabam mesmo reverberando personagens que poderíamos encontrar em outras narrativas - não estamos dizendo aqui que não sejam únicos, porém, seus tipos são reconhecíveis. Bronco Gil, um anti-herói que representa o ciclo sem-fim da violência, criado para matar, pronto para morrer. Espécie de tronco impenetrável ao serrote, alguém que representa a impossibilidade de cessar dessa violência. Melquíades, por sua vez, afundado no meio, corrompido pela violência da qual ninguém escapa, em determinados momentos lembra-nos O Governador, de The Walking Dead; enfim, relacionamos tais coisas com outros exemplos próximos, como no caso de não conseguirmos deixar de lembrar em virtude das tornozeleiras, o colar em O sobrevivente;

9 - Ou seja, o leitor escolherá um caminho por qual percorrer sua leitura. Há sem dúvidas a busca por abordar a violência que habita os homens - nesse caso, como dissemos, os homens, já que as mulheres não habitam a narrativa - num ciclo histórico cuja única herança sejam os ossos, despojo de nossas ignorâncias; mas também há os que vão percorrer a leitura imersos em um faroeste, partindo do princípio que isso é mundo e que Bronco Gil é o herói de todos eles.. tais veredas para interpretação podem ser um tanto quanto discutíveis;

10 - Enfim, Assim na terra como embaixo da terra é leitura que traz logicamente as marcas que fazem de Ana Paula Maia uma grande mestra dessa literatura da violência que nos molda. De certo modo sua obra reverbera a lógica de que "o Diabo vige nos crespos dos homens", de que a violência habita algum ponto dentro desses corpos representantes de um patriarcado construído pela pedagogia do sangue, dos "saberes" que são passados de uma geração a outra onde meninos desde cedo aprendem como matar e como odiar. Essa violência entranhada nesses corpos masculinos que entregam-nos então uma sociedade que não foge à regra da colônia penal onde são todos caça e caçadores numa selva trágica em que a esperança está morta, na terra ou embaixo dela.

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