10 Considerações sobre O livro dos mortos, de Lourenço Mutarelli ou inferno é um labirinto, e nós percorremos o labirinto...

O Blog Listas Literárias leu O livro dos mortos - uma autobiografia hipnagógica, de Lourenço Mutarelli publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Como começar esta resenha? Dizendo que entre todas as estranhezas e absurdos de Mutarelli seja este o mais absurdo? Perguntando-se diante de tal e enigmática obra, seria este seu livro-testamento? Seria este o último? O que mais pode fazer Mutarelli depois desta pancada complexa, filosófica e íntima jornada ao espaço mais líquido e indefinível de todos os seus trabalhos? Talvez devamos começar dizendo que estas 10 considerações de longe poderão ensaiar todas as possibilidades ou abordar os elementos profundos que encontraremos nessa obra que o futuro dirá - e suspeitamos - e a incluirá no panteão das grandes obras nacionais. O livro dos mortos é uma coisa, é uma paulada, é sobretudo a grande teoria mutarelliana sobre fazer e ler literatura, esse terreno que a despeito das tentativas de fronteirização, é rebelde per se, que dilui qualquer fronteira, seja de gêneros, seja entre o que é real ou sonho. É sobre esse entremundo que discorre a obra de Mutarelli. Nesse post tentaremos dar conta de alguns aspectos desse seu novo livro, leitura difícil, carregada de simbologias que carecerão de tempo para que decifremos tudo que aí está;

2 - Comecemos pelo básico, neste livro temos Pompeu uma estranha figura fracionada pelo duplo, o duplo, como vimos, presença requerida no transcorrer da literatura de Mutarrelli. Aliás, nesse caso mais que um duplo, um duplo sob o signo da Trindade, outra simbologia mística presente em seus livros. Tal estranho personagem em tal estranho mundo, um labirinto, veredas em constantes altercações, paredes móveis, ao mesmo tempo únicas, mas sempre as mesmas - vide o nome único que todas passam a receber - pelas quais Pompeu percorre a passos ou pela memória. Pompeu, criatura estranha, cheia de cópias, uma alma denunciada à inquisição do demônio, alguém que guarda um segredo inviolável - e não revelado - que passa a vida a entreter outras criaturas, Pompeu uma Sherazade com seus mil e um contos, Pompeu um contador de estórias, mas acima de tudo isso um colecionador de estórias, ouvinte, uma criatura ressonante, ressonante somos todos nós por causa das vozes que nos constituem... a seu modo todos nós somos Pompeu e Pompeu é todos nós... Pompeu que é Lourenço Mutarelli...

3 - E aqui devemos tratar de uma das tantas complicações dessa leitura, da confusão deliberada a que Mutarelli joga seus leitores. Embora o romance de natureza mais autobiográfica, ou mesmo autoficção como chegou a ser tratado, do autor é O grifo de Abdera (2015), entretanto, aos leitores do autor, os seus lances e jogos confundindo os papéis entre autoria, personagens, etc, pode ser visto em outras obras suas que trazem personagens "reais" conhecidos - Ferréz sempre uma presença - para o interior de suas ficções. Mutarelli, como já dissemos em outras oportunidades destroça qualquer fronteira dos gêneros, suas obras até mesmo provocam com a fusão e mistura de múltiplos gêneros literários que a um leitor formalista seria difícil colocá-lo em caixas muito bem definidas. Isso parece-nos uma proposta bastante consciente das narrativas do autor, e nessa sua mais recente obra, Mutarelli radicaliza esse jogo com as fronteiras dos gêneros. É uma narrativa o sabemos, mas colocá-la em uma caixa, boa sorte! E tal provocação já nos chega ao subtítulo do livro - uma autobiografia hipnagógica. Se, por um lado o termo autobiografia parece-nos uma confissão do autobiográfico, se em alguns momentos temos não só Mutarelli enquanto narrador ou mesmo documentos pessoais do autor encartados ao romance - se isto é um romance - o adjetivo que fecha o subtítulo é a granada, a bomba que explode tudo e leva toda narrativa ao terreno gelatinoso que é a narrativa mutarelliana, ao "entre-alguma-coisa"; deixai toda esperança, vós que entrais, a mensagem deve ser lembrada, entrar no Livro dos mortos - ou em qualquer obra de Mutarelli é entrar a um lugar em que toda e qualquer referência ser-lhe-ão retiradas;

4 -  Nesse sentido, precisamos abrir uma linha de raciocínio. Embora as vanguardas estejam mortas, pelo menos desde a última fase do Modernismo, para alguns, mortas desde sua primeira fase, Mutarelli é um autor de vanguarda sem que estas mesmo o existam ainda. Primeiro porque a arte de vanguarda está relacionada a grupos e movimentos, não é bem o caso de Mutarelli; segundo porque a arte e a literatura de vanguarda geralmente são acompanhadas de manifestos doutrinários, o que também não é o caso, e não é porque para Mutarelli sua literatura é a própria doutrina, sua obra é a doutrina e o manifesto de sua arte. Nisso assemelha-se a outro vanguardista que espantou nossa literatura, Guimarães Rosa. Rosa era um vanguardista sem o sê-lo como o eram os vanguardistas famosos. Mutarelli assim o é, e assim o é esse estranho e inquietante O livro dos mortos, obra de vanguarda, obra que desnorteará muitos de seus leitores e de nossa crítica, sustos serão tomados e escritos até que tenhamos total compreensão do que faz Mutarelli nesse livro que parece-nos equilibrar-se sobre uma corda-bamba que percorre sua obra, uma corda-bamba entre a metafísica e o absurdo existencial, sendo que, se nos anteriores o equilíbrio já era difícil em virtude do balançar da corda, neste temos ventos vindo de todas as direções...

5 - Mas retomemos a questão da vanguarda. Ousamos dizer que talvez desde Grande sertão: veredas e das mais canônicas obras da primeira fase do Modernismo não temos uma narrativa tão claramente de vanguarda.  Precisamos olhar para algumas das escolhas do autor na construção de sua obra - grande parte já concluída até o seu infarto que ocasionou inserções e alterações na passagem final da obra - ; São no decorrer da narrativa 193 notas de rodapé, das mais distintas possíveis e as quais não podem e não devem ser negligenciadas pelo leitor. Tais notas vão de citações a manifestações pessoais do escritor nesse seu jogo proposto a até mesmo breves -não-tão-breves ensaios que nos são relevantes. À abertura do livro sugere a leitura das notas, mas não condiciona o leitor. Oras, se ali estão é por alguma razão e o leitor vai lê-las - e deve; o autor diz que são quase como um livro a parte e pondera que elas alteram o ritmo; Mutarelli "brinca" conosco, e as notas como perceberemos são essenciais na compreensão ou tentativa de compreensão da doutrina estética interna aos romances de Mutarelli; 

6 - Aliás, a um leitor assíduo de Mutarelli - nosso caso - as notas de rodapé e as epígrafes são tracejados no mapa de nossa interpretação do que é, de quem é ou o que pensa ou parte o pensamento de sua literatura. Exemplo disso é a epígrafe nas páginas iniciais com passagem de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, autor cujos ecos já tínhamos percebido em narrativas do autor. Mutarelli parece-nos ressoar os labirintos e os labirintíticos, de modo que autores como Rulfo, Borges, Kafka e Borges são indispensáveis na interpretação de seu trabalho. As notas de rodapé reforçam isso, como reforçam sua busca pelos mitos ainda que os narradores - e o autor - saltem contra as "acusações" de ser mitômano. As notas de rodapé ecoam as criações modernistas - o que faz sentido se pensarmos nos traços surrealistas que Mutarelli diz banhar-se -, mas não são as únicas marcas; Encontraremos vanguardas nas intromissões do escritor que confessa-se narrador, nas repetições como espelho de passagens já escritas, que ampliam o desnorteamento dos leitores, a radicalização das fronteiras entre "o real e a ficção", e essa é uma fratura recorrente, a ousadia de trazer um ensaio como nota de rodapé - um ensaio elucidador naquilo que já tínhamos percebido nas narrativas do autor e hoje constitui-se meu projeto de pesquisa no doutorado -, nas recorrentes fusões entre a prosa e a lírica comuns a sua literatura, enfim, há uma boa dose de elementos de vanguarda em seu livro;


7 - Tudo isso ancorado, marcado e tatuado pela filosofia. Há algo de filosófico na narrativa de Mutarelli - em todas elas - e o pensamento de diferentes filósofos veremos pelas notas de rodapé, é quase que um estudo, uma tese, uma dissertação -; e não que Mutarelli simplesmente reverbere tais filosofias ou soe como um professor didatista explicando teorias e pensamentos filosóficos. Mutarelli pratica a filosofia a partir das leituras e questionamentos filosóficos, diferentemente da maioria de autores contemporâneos que procuram aplicar Nietzsche, Focault, etc. a seus romances; Mutarelli, por sua vez, tenta decifrar, entender, questionar ou avançar sua própria filosofia a partir da filosofia. E há uma diferença gigantesca entre aplicar uma filosofia a um romance e questionar as filosofias em um romance. Mutarelli está nesse segundo time, cremos;

8 - Mas voltando ao livro e ao começo de nosso post, perguntamo-nos, inclusive, se não seria este o último romance de Mutarelli. Há algo de testamental nele. O testamento de sua obra.  Um acerto de contas, o acerto de contas final, um acerto coerente, por sinal. Se em outras obras, mas especialmente em O filho mais velho de Deus... temos a confissão na dificuldade de compreender a ideia de Deus, visto que a ideia de Diabo é mais compreensível, não é a São Pedro ou Deus que Pompeu prestará suas contas, mas ao Diabo ou aos tantos demônios que peregrinam as veredas de Sondra Porfírio. Pompeu está sob inquisição do Diabo e de modo freudiano vai resgatar a infância, os problemas com o pai, vislumbrar seus crimes e suas culpas - é também uma narrativa sobre a culpa. Aí irrompe um dos símbolos recorrentes na literatura de Mutarelli, o pacto fáustico, elemento que até então vinha passando em branco nas análises sobre seu trabalho - especialmente em sua literatura. Tal pacto e o diabo são presenças recorrentes em sua narrativa - em meu doutorado estamos iniciando a pesquisa olhando para tal elemento em sua obra, visto que o pacto fáustico nas narrativas de Mutarelli ao ser compreendido poderá contribuir para não só o entendimento de sua literatura mas a compreensão do espaço que o autor ocupa em nossa literatura brasileira - e nessa narrativa, em seu testamento de morto, o Diabo está em cada vereda, em cada página e tenta arrancar de Pompeu suas culpas, expiar sua travessia;

9 - Mas não se trata de uma travessia simples. Voltemos ao hipnagógico, ao mundo de sonhos e pesadelos de Mutarelli, ao seu entremundo. Na inquisição de Pompeu, o mesmo precisa ler um livro, no caso o que trata dos sonhos de Polifilo, um livro que Pompeu não consegue ler pois lhe dá sono. Desconfiamos que sua narrativa hipnagógica procura conscientemente também hipnotizar e adormecer seus leitores. Diferentemente de algumas jornadas do autor, esse livro, tanto pelas notas, quanto pelos quadros, frames e cenas em repetição parece querer atirar o leitor ao mesmo sono de Pompeu ao ler Polifilo. É leitura truncada e como nos sonhos, sem as leis da física - os dois gatos é provocação a isso -; A narrativa desdobra-se e em alguns casos repete-se como se você, aprisionado ao labirinto, voltasse a um mesma casa - aliás, o que ocorre muitas vezes com Pompeu. Talvez não leiamos O livro dos mortos, o sonhamos. Tal como um sonho sem leis e sob a lógica aceitável do absurdo, do não-sentido, entramos por uma porta que nos leva a uma sucessão - ou repetição de imagens - capazes de imprimir nos leitores tamanha efeito que é destas leituras que se agarram a nossa pele, a nossa existência. Fraturamos nossa existência para habitar o entremundo mutarelliano;

10 - Enfim, estamos longe de tratar minimamente tal livro. Podemos encerrar - esse post pelo menos - dizendo que estamos diante da obra mais enigmática e ao mesmo tempo mais elucidativa das obras de Lourenço Mutarelli. Não sabemos se virão outros romances depois desse, mas o fato é que precisaremos de muitas pessoas e de algum tempo para compreender tudo que o autor faz nessa obra, ao mesmo tempo que essa obra é uma declaração de tudo que Mutarelli tem feito em nossa literatura desde O cheiro do ralo. Em um post chamamos o autor de Bruxo de Vila Mariana, consideramos agora mais adequado chamá-lo de O demônio de Vila Mariana, com suas transfigurações, com suas tentações... e aqui demônio é elogio, diga-se. De todas as incertezas nascidas com a leitura dessa obra a única certeza de que continuaremos tentar compreender a cada tentativa um pouco mais dos enigmas de das visões que Lourenço Mutarelli nos entrega nesse romance, um romance que o tempo dirá sua localização em nossa literatura, mas que ousamos dizer que desconfiamos: estará numa sala restrita, com obras seletas, ao centro o Deus e o Diabo observando-as orgulhosamente. 

:: + na Amazon ::


     



Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem