10 Considerações sobre O silêncio dos inocentes, de Thomas Harris ou o crime como espetáculo

 O Blog Listas Literárias leu O silêncio dos inocentes, de Thomas Harris publicado pela editora Record. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou o crime como espetáculo, confira:


1 - Embora o segundo volume de uma trilogia, certamente O silêncio dos inocentes é a obra mais lembrada do trio, em parte pelo catapultamento acontecido pela adaptação, em parte pelas qualidades significativas da obra, claro. O livro constitui-se um dos mais importantes do gênero das narrativa policiais, mais que isso, é um dos principais nomes de um jeito muito particular de escrever "crime novels", o jeito norte-americano com seus thrillers que de certo modo pretendem sempre imergir os leitores em uma jornada alucinante contra o tempo;

2 - Na narrativa nos deparamos com uma forte e obstinada protagonista feminina, Clarice Starling, uma resistente num mundo masculino e um tanto hostil para a presença das mulheres. Caloura do FBI, Starling acaba sendo colocada numa caçada frenética a Buffalo Bill, um serial killer que assassina mulheres acima do peso. Isso ocorre a partir do contato a que ela é posta, com um temível e perigoso prisioneiro, Dr. Hannibal Lecter, cuja mente privilegiada põe a girar uma engrenagem macabra;

3 - E aqui podemos abordar parte do título desse texto. Não é novidade como a cultura norte-americana é marcada pelo espetáculo com que tratam tudo, especialmente o crime e seus criminosos famosos. Lecter, nesse sentido, é um exemplar dessa sociedade. Preso em uma cela de máxima segurança, atado às suas camisas de força e a sinistra máscara de hóquei a proteger a carne dos outros de seus afiados dentes, para além da inteligência que lhe constitui, elemento marcante é a forma com que Hannibal é tratado pela sociedade, com certa deferência e admiração que fazem do prisioneiro certa celebridade. Vimos isso pelas relações que ele mantém com publicações acadêmicas, pelos diversos momentos em que Harris demonstra o quão popular Lecter é, uma espécie de anti-herói que diz mais sobre os outros e a sociedade do que propriamente do cínico e psicopata Dr. Hannibal Lecter;

4 - Aliás, na narrativa Lecter ocupa mesmo certo espaço de um anti-herói, mesmo com os atos pregressos realizados e os que realiza no decorrer do romance. A bem da verdade, mesmo com todo o protagonismo e força de Starling, é as mãos de titereiro de Lecter que conduzem o FBI na caçada a Buffalo Bill. Sua admiração para com Starling desempenha certo papel nisso, obviamente, de modo que tal como um pássaro cantador, o assassino é quem entrega as pistas ou sugestões essenciais para que Clarice possa trabalhar se destacar em sua missão;



5 - Mas vale dizer que o livro tem como marca, personagens fortes. Crawford, o superior de Starling, espécie de policial noir envolvido por graves problemas pessoais (Clarice tem lá suas notas noir também) é da mesma forte um personagem forte da narrativa. Passa por esse trio algumas das nunces que costumamos ver nesse tipo de narrativa, especialmente dos perigos que todos correm, não apenas as vítimas ou assassinos a serem caçados, mas os próprios investigadores que têm de lidar não apenas com o crime ou os criminosos, mas também com a política, especialmente as políticas internas dos órgãos de segurança que podem te passar uma rasteira a qualquer momento, de modo que ao agente policial da narrativa há sempre e apenas duas únicas opções, ou o sucesso ou a desgraça na carreira;

6 - No caso de O silêncio dos inocentes esse complicador mostra-se ainda mais intenso ao passo que Buffalo Bill rapta a filha de uma senadora norte-americana, o que põe tanto Starling quanto Crawford a andar sempre por sobre um fio de navalha. Esse sequestro não só instaura a urgência e a contagem regressiva pela captura de Buffalo Bill como introduz mudanças no esquema do foco narrativo que até então privilegiava sua possível protagonista;

7 - Isso porque a narrativa é desses thrillers que em determinado momento dão aos leitores acesso ao serial killer, à caça. No primeiro terço do romance temos o foco narrativo de um narrador em terceira pessoa acompanhando basicamente Clarice Starling. É só a partir do rapto de Catherine que o foco narrativo se mostra de forma mais efetiva intercambiante, inclusive como se fosse uma câmera fosca, a acompanhar o tenebroso Buffalo Bill e sua masmorra de horror. Nesse sentido, esse foco intercambiante dinamiza ainda mais o thriller, como se pede o gênero;

8 - Tudo isso torna a leitura eletrizante, especialmente a gradação linear dos grandes acontecimentos que levam ao desfecho, algo que o gênero bem o sabe fazer e Thomas Harris é um de seus fundadores. A tensão torna-se permanente e a capacidade descritiva de Harris faz com que nos sintamos nos cenários carregados de perigo e morte da narrativa;

9 - E nos encaminhando ao fechamento deste texto, gostaríamos de realizar aqui uma espécie de aparte ou curioso apontamento de questões provocadas não pela leitura em si, mas por todo o "cronos" envolvido. O silêncio dos inocentes nem é assim tão antigo, publicado originalmente em 1988, contudo ao leitor do cronos-agora não deixa de ser curioso submergir não só no suspense do romance, mas no próprio cronos-tempo. O livro, obviamente, é uma narração de seu tempo e que observa a tecnologia de seu tempo, e ao leitor do presente causa certa sensação as cenas que se desenvolvem de modo tão distinto e distante como no nosso hoje ocorreria. Dou como exemplo certa cena em que Starling adentra a um covil, sem acesso a qualquer telefone, tendo de num breu catar por alguma linha. O leitor do cronos-agora fica a todo momento pensando "chama reforço pelo celular, guria", numa anacronia que leva alguns segundos para recordar, cara, ela não tinha celular. Muito interessante isso e outras questões anacrônicas que envolvem a tecnologia criminal;

10 - Enfim, O silêncio dos inocentes é leitura eletrizante e com personagens marcantes que não à toa estão no hall dos "sempre lembrados". Para além do entretenimento proposto, temos uma série de descobertas e discussões possíveis a partir deste ótimo thriller que lega à cultura um de seus mais sombrios e tenebrosos personagens. Grande livro.

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