10 Considerações sobre O Pintassilgo, de Donna Tartt ou como semear a culpa...

O Blog Listas Literárias leu O Pintassilgo, de Donna Tartt publicado pela editora Companhia das Letras; neste post confira as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:

1 – O Pintassilgo, de Donna Tartt é um primor narrativo em que numa obra hiperrealista somos apresentados a personagens palpáveis e humanos onde o caos da vida é narrado a partir das reminiscências de um narrador que mergulha em diversos abismos até poder encontrar minimamente um sentido para tudo;

2 – Theo Decker é este narrador que reconta sua história, permeada por traumas e perdas, revivendo tudo que o levara ao fundo de um poço perigoso e quase sem saída. Sobrevivente de um atentado do qual sobrevive e o qual gera sua ligação com a obra de Carel Fabritius, O Pintassilgo, ele narra uma teia de acontecimentos a partir da morte da mãe nesse mesmo atentado, fator divisor de águas em sua vida que o coloca numa jornada conturbada que o torna um sobrevivente diante uma série de escolhas e acomodação necessárias à nova realidade, onde tudo pode acontecer (e acontece) numa série de acontecimentos que o moldam como o fogo molda o aço;

3 – Contudo, antes de qualquer outra coisa, é perceptível em sua narrativa o sentimento de culpa que ele cria buscando justificativas para os fatos acontecidos, uma atitude humana muito como de prender-se ao “e se”, centralizando para si resultados de ações que fogem do seu próprio eu. Isto é, obviamente, um caminho comum porque diante do concreto e com a distância do realizado se torna fácil percebermos que uma única mudança ao longo de um dia pode desencadear uma série de probabilidades que na verdade não estão totalmente sob nosso controle. Porém, para um jovem adolescente esse é um pensamento inviável, e assim, Theo martiriza-se longamente imputando a si mesmo uma culpa inexistente, algo que lhe marcará pela vida toda. Entretanto, não só Theo apresentará esse comportamento ao longo da narrativa, mas também outros personagens que consegue semear a culpa sobre si mesmos, tomando as rédeas das tragédias comuns que lhes afligem;

4 – E a capacidade e profundidade psicológica com que Theo consegue imprimir em suas palavras certamente colocam-no como um dos melhores narradores já visto, especialmente porque consegue criar uma atmosfera tão real que seus ambientes e habitantes se tornam íntimos e reais para o leitor de tal forma que certamente estarão no panteão da literatura, pois acima de tudo, esta é uma narrativa que deixa marcas e promove o impacto esperado por uma grande obra;

5 – Desta forma, como leitores, como se fossemos uma entidade etérea invadindo os pensamentos e a intimidade de Theo Decker somos conduzidos através do olhar dele mas com a liberdade de percebermos aquilo que ele como testemunha e protagonista dos acontecimentos não conseguia observar, o que nos causa muita aflição, pois as armadilhas estão ali e nós vemos, contudo sem qualquer possibilidade de ajudá-lo e dizer-lhe que tudo aquilo pode dar muito errado;

6 – Com isso, a partir do resgate feito pela narrativa de Theo somos levado das “altas rodas” ao submundo com suas “criaturas” extrovertidas e perigosas. Conhecemos a história de um rapaz tragado para um mundo psicodélico repleto de drogas e fugas; uma viagem alucinante, autodestrutiva e inconsciente; uma viagem intensamente marcada pela presença obscura de um quadro em sua vida, algo que molda suas ações ao mesmo tempo que o leva a tomar decisões temerárias diante de escolhas conflitantes, mas mais importante que isso é que, embora Theo traga todas suas tragédias na narrativa, não as usa explicitamente para justificar seus erros, esses, aliás, surgem muito mais pelo medo e pela urgência com que as mudanças lhe surgem;

7 – A partir disso tudo, temos então um romance que procura debater a essência da ação humana e apresentar seu próprio olhar sobre a vida, o que fica mais claro ao encerramento da narração em que Theo, após sua epifania torna-se mais lúcido e capaz de compreender sua louca jornada. Nesse momento, ele reforça toda essa questão da dualidade humana, a linha tênue entre acertar e errar, o modo de compreender os acontecimentos, enfim, no final a obra apresenta-se como uma grande busca e um reencontro;

8 – Aliás, essa questão formativa de caráter estabelecida por Theo encontra contrapontos e singularidades naquele que se torna uma espécie de sua contraparte, Boris; na verdade, o caminho de ambos é muito semelhante, tanto em ações quanto escolhas, contudo o grande dilema moral apresenta na distinção de seus pontos de vistas, algo que se amplia após, digamos, “a grande visão” de Theo, algo como uma desintoxicação que permite-lhe mesmo que minimamente observar com mais clareza sua própria condução e escolhas, algo recolocando a vida sob seu controle novamente;

9 – Por tudo isso é praticamente impossível encontrar falhas numa obra como essa. Um romance canônico ao mesmo tempo que pode ser extremamente popular, cujo pano de fundo com festas sociais, obras de arte e criminosos cheios de charme é simplesmente um elemento dos tantos que a tornam humana ao máximo, e que ao fim, após toda a jornada decadente de um Theo à beira de um precipício versam de coisas natas de cada ser humana, seja em seus erros, seja em seus acertos;

10 – Enfim, O Pintassilgo, de Donna Tartt é uma dessas obras que vêm com o carimbo “obras que todos nós deveríamos ler durante a vida” estampado em suas páginas. Uma obra contundente e perfeita numa construção narrativa que excelência e vigor tornam-na indispensável aos bons leitores.




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