10 Considerações sobre Eva, de Cat Bohannon ou como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana

 O blog Listas Literárias leu Eva - Como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, ou por que precisamos de uma ciência múltipla e capaz de olhar para além do corpo e das coisas dos homens. Confira:


1 - Antes de mais nada, Eva é um vigoroso e amplo trabalho de divulgação científica que provavelmente se tornará obra de referência, não apenas por colocar em debate aspectos muitas vezes negligenciados pela pesquisa e pela ciência, caso dos corpos femininos, mas também por realizar através desta abordagem o resgate do feminino para o centro desta ciência e para além disso, ressaltar que a compreensão de quem nós somos e o que nós podemos ser, passa impreterivelmente por colocar as mulheres nessa equação, o que nem sempre, como demonstra a autora, é lembrado nos tantos trabalhos desenvolvidos pelas pesquisas, isso nos mais distintos segmentos científicos;

2 - Aliás, ao leitor de Eva é importante essa observação de que temos diante de nós um trabalho de divulgação científica e, ainda que possamos encontrar e identificar as marcas ideológicas que o sustentam, ele está longe de ser um trabalho meramente político e ideológico. Inclusive, é bem possível que os que se afastam da leitura ou os que a procuram por imaginar se tratar de um trabalho meramente feminista, cometam enganos nisso. Não que não haja uma busca feminista na justa e necessária lembrança de que a ciência deve trazer os corpos femininos para o palco principal das pesquisas, isso é político, isso mostra a ideologia da autora, claro (se você não é nem uma besta quadrada, bem sabe que todos nós temos ideologia, mas uns tentam escondê-la). Mas a essência da obra está na ciência, no que é científico e todo seu rigor; isto, veremos, pode causar incômodos a muitos, já que muitas das "verdades" e os aspectos que Bohannon nos demonstra podem soar um tanto atrozes para alguns membros da civilização humana. Além disso, numa obra que concentra-se na evolução humana e no que sabemos cientificamente sobre ela, a consciência de que essa evolução não se dá por valores morais ou éticos é fundamental - e talvez fonte dos possíveis incômodos que a obra provoque (na verdade preferimos pensar, nas abordagens que a obra nos tira de uma zona de conforte, pense você a, b ou c);

3 - Dissemos isso porque consideramos que a disposição do leitor seja importante na preparação de entrada à essa obra. Você será apresentado a uma enormidade de coisas geralmente novas para muitos de nós, num trabalho marcado pela primazia da biologia. Isso implica numa leitura vagarosa, de apreensão lenta, muitas vezes de conceitos e termos. Na verdade, o que desejamos dizer é que não se engane, ser um trabalho de divulgação científica não significa nem de perto dizer que se trata de um trabalho de linguagem simples ou facilitada (ainda que a autora - ou ao menos a tradução expresse isso - mantenha uma voz muitas vezes informal). Trata-se de uma complexa e densa reunião de volumoso conjunto de estudos humanos, que nas mãos da autora são ressignificados e repensados na perspectiva da proposta e objetivos de seu trabalho;


4 -  Isto se mostra evidente no fechamento de sua introdução, "Por que falar sobre a evolução das mulheres se ela não tivesse sido negligenciada? Por que mirar essa câmera na forma feminina se isso ainda não fosse, por incrível que pareça, algo inabitual? Não há como construir um "retrato" mais fundamental das mulheres do que pedindo a quem lê para pensar sobre todas as mulheres, em todos os lugares, todos os tempos. E é isso que eu peço a você. O que peço é que olhemos os corpos das mulheres e pensemos em como eles influenciam o que significa ser humano";

5 - O trecho acima entrega-nos duas questões essenciais ao seu trabalho. A primeira, parte de certa forma da análise do estado da arte. Com muita propriedade e dados, a obra denuncia e demonstra como mesmo a ciência acaba deixando de lado uma questão fundamental no processo da evolução humana: a mulher e o corpo feminino. A autora consegue demonstrar com muita assertividade como essa ciência está centrada no corpo masculino, isso os mais diferentes aspectos, mesmo no que se refere à saúde humana e na medicina. Ela demonstra como grande parte dos estudos têm nos corpos masculinos a centralidade. Do desenvolvimento de remédios, vacinas a estudos comportamentais. O que resulta em descobertas aplicadas a todos, mas que ignoram as peculiaridades do corpo feminino. A bem da verdade, a autora nos mostra como as mulheres são colocadas à sombra das pesquisas, e não estamos falando de mulheres pesquisadoras, mas de mulheres negligenciadas pela ciência que as ignora perigosamente;

6 - A segunda importante questão é que a partir desse negligenciamento, a autora então se propõe a trazer o corpo feminino para o centro das preocupações científicas. Partindo de um termo constituído por nossa mitologia ocidental a autora vai ressignificar Eva. Em vez das maldições e da alienação por ser a costela de uma Adão bem xexelento, as Evas de Bohannon representam as Evas iniciais em distintos e relevantes momentos da evolução humana tendo o corpo feminino nesta centralidade. O que a autora faz é estabelecer Evas representativas de mudanças evolutivas no corpo feminino que se mostraram vitais para a evolução e para nos trazer ao que somos hoje. Sem tais Evas, certamente não seríamos o que somos, e mais do que justiça feminina, o trabalho da autora nesse aspecto colabora para a compreensão da evolução de toda a nossa espécie;


7 - Para dar conta de sua proposta a autora apresenta-nos então sete Evas originais de alguma mudança genética indispensável para nos trazer até aqui do modo que o somos hoje. Evas que recuam bastante no tempo, antes mesmo do Homo passear por estes bosques, cada dia mais com menos bosques. São quatro Evas que precedem as Evas das espécies Homos. Cada Eva notadamente responsável por mudanças que conduzem ao Homo e relacionadas ao corpo feminino. Assim, temos a Eva do leite, afinal, em algum momento nos tornamos mamíferos, a Eva do útero (esse capítulo muito importante para pensar a evolução humana), a Eva da percepção, das pernas, das ferramentas, do cérebro e ainda que não  estabelecidas como Evas, personagens importantes que vão tratar da voz, da menopausa e do amor. Em conjunto, essas Evas e personagens femininas constituem os nove capítulos do livro que vão defender aspectos essenciais do corpo feminino no nosso processo evolutivo; O feminino trazido para o centro das questões científicas e não só pelo texto, reforçado também pelas ilustrações, algo que reforça a posição e busca da autora, até porque você certamente já percebeu o quanto o corpo masculino domina as ilustrações científicas e médicas;

8 - E aí reside talvez um dos possíveis incômodos que a obra pode suscitar em certos leitores e leitoras: o livro é pautado pela biologia. A cada página que avançamos a concretização que alguns poderiam chamar de acidentes genéticos, mas que preferimos pensar como resultados de escolhas coletivas que fomos realizando numa longa jornada e que resultaram em mudanças genéticas que nos transformaram nessa coisa que é um ser humano. Esse olhar biológico pode incomodar alguns leitores e leitoras, assim como algumas afirmações e comparações trazidas à baila. Entretanto, vale dizer que a autora assume esse olhar demarcado pelo biologismo, o que confere toda honestidade ao seu trabalho já que ela em nenhum momento esconde seja seus objetivos seja o que pauta-a. Isso, a questão biológica, às vezes passa despercebido pelos olhares dos mais distintos espectros do pensamento humano, todavia o biologismo de Bohannon não deve ser visto como algo negativo, pelo contrário, será tanto quanto mais complicado nossa tentativa de nos entendermos se tirarmos a biologia e a evolução em nossos cálculos (e antes que um tonto venha comentar, biologia não quer dizer que meninos nascem macho e meninas nascem mulheres, uns vestindo azul, outras rosa. A biologia é mais complexa que isso, como quem ler todo o livro, pode constatar);


9 - Não queremos dizer com isso que Bohannon acerta em tudo que aponta. Pensamos que na maioria das vezes sim, contudo, divergimos dela num ponto específico, no capítulo que fala da voz, em que procura refletir a questão da linguagem humana (vários aspectos interessantes a respeito da linguagem feminina ali estão expostos). Nossa divergência, embora ela mesmo acabe não propondo uma Eva da linguagem, se dá pelo fato de que ela prefere deixar essa mudança a partir do homo sapiens. Essa é uma abordagem marcada ainda pela força da ideia de um salto cognitivo um tanto incerto e defendido especialmente por pensadores ligados ao gerativismo. Todavia, essa teoria está em xeque e vem sendo questionada com sólidos argumentos por alguns linguistas e antropólogos, como, por exemplo, Daniel Everett que em sua tentativa de descrever a história da linguagem considera esta criação humana datada há pelo menos 1,5 milhões de anos e defende que os homo erectus já a tinham desenvolvido. Everett tem bons argumentos para isso que seriam interessantes na busca de Bohannon por uma Eva da linguagem;

10 -  Enfim, Eva, de Cat Bohannon além de uma ótima provocação e um alerta necessário de que não podemos negligenciar os corpos femininos na evolução humana, entrega-nos um vasto conhecimento científico capaz de transformar sua obra numa referência geral e melhorada, já que ao tratar dos aspectos dos corpos femininos preenche uma lacuna imperdoável da pesquisa e das ciências. Um livro que você vai lendo aos poucos (ainda que seu texto seja fluido) porque nos entrega muita coisa em suas páginas e aventa para uma ciência cuja palavra não deve ser inclusiva, mas sim assertiva, já que uma ciência que ignora e negligencia metade do corpo constituinte do conjunto da espécie é uma ciência incompleta. Bohannon nos propõe a ciência em sua completude.

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