O blog Listas Literárias lei Criatura noturnas, de Leila Mottley publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, uma impactante jornada pelas tragédias humanas que assolam o mundo, caso da desigualdade étnico-racial, confira:
1 - Acima de tudo, Criaturas noturnas expõe as estruturas sociais de uma civilização que falha miseravelmente em civilizar-se. Narrado em primeira pessoa por Kiara, uma adolescente negra de Oakland cuja jornada é a aventura humana de tentar sobreviver num mundo hostil à sua existência. Construída a partir de lembranças de fatos semelhantes acontecidos, a protagonista nos traz um olhar endurecido e nutrido de pouca esperança, cuja resistência maior se mostra no fato de ela seguir em frente a despeito do mundo (da sociedade) que lhe tenta negar esse direito básico;
2 - Kia (Kiara) vive num apartamento cuja possibilidade de despejo é iminente. Com a estrutura familiar destroçada, orfã de pai e a a mãe internada, ela precisa resolver as coisas por conta própria, enquanto o irmão sonha com a carreira de rapper, sem muito sucesso. A jovem no limiar da vida adulta, tem seus dezessetes anos e ainda dá suporte materno a um menino, filho de uma vizinha viciada em drogas e relapsa. Ou seja, não há adolescência, não há juventude, as estruturas sociais cobram dela a todo momento, escolhas, boas ou não, na tentativa de resistir um dia após o outro;
3 - Nessa dura realidade, a vida da jovem se transforma então numa corrida diária a tentar dar conta de duas questões essenciais: conseguir grana para pagar o aluguel, que sobe constantemente pelo fato de aparentemente estar rolando um processo de gentrificação no bairro, e grana também para poder comer. Há no livro várias questões abordadas, essa parece-nos menos direta, mas extremamente impactante, a despeito de uma sociedade que diz-se a grande potência do globo, o romance de Mottley denuncia que nessa mesma potência uma parcela significativa de sua sociedade sofre a ameaça da fome e da insegurança alimentar;
4 - Soma-se a esse quadro o desemprego. Kiara diante da necessidade de conseguir dinheiro bate em muitas portas, as quais lhes recebem com muitos nãos. Um bico aqui e outro ali, sempre insuficiente, até o dia que ocorre algo que atira-a sem dó à noite, que faz a garota tornar-se uma criatura noturna das ruas de Oakland. Sem ninguém a recorrer, a escolha, esta que lhe trará muitas consequências, pela prostituição inicia uma espécie de via crucis da menina. Para além do fato de ter que relacionar-se com todo tipo de gente, ela será sequestrada pelas hierarquias do poder, sendo escravizada, e o termo a se usar deve ser esse mesmo para dar conta do quão grave é a situação, pelas estruturas de uma sociedade racista e misógina;
5 - Sozinha e sem proteção nas ruas, a garota acaba sendo sequestrada por um grupo de policiais que transforma-a praticamente em seu brinquedo. São muitos e todos os tipos de abuso, sexuais e de poder perpetrados contra ela. Detalhe interessante é que a partir da relação ambígua que ela trava com homens que reconhece apenas pelo número do distintivo, seu olhar duro e prático da vida acaba desnudando as hipocrisias sociais a partir de uma quase da dúvida juvenil do não entendimento da vida dupla daqueles homens, outras criaturas noturnas, predadores noturnos, e a fachada que devem guardar em algum lugar com esposas, filhos, etc. Isso se intensifica a partir de fato que acontece com um desses policiais e coloca a jovem sob os holofotes numa disputa - entre brancos - sobre as condutas desses homens da lei, e a partir disso todo o sistema agindo em proteção a eles;
6 - É justamente esse nó da narrativa, todo o sistema de proteção que depois se cria em torno dos policiais que abusam de Kia e outras garotas, que a autora esclarece ter buscado na vida real. Mottley explica em uma nota do livro que a inspiração e necessidade de denunciar tais posturas vem de suas lembranças de caso ocorrido em 2015 quando circulou a história de agentes legais explorando sexualmente garotas. Segundo a autora, ela queria "escrever uma história que refletisse o medo e o perigo que acompanham a mulheridade negra e a adultização de meninas negras, mas ao mesmo tempo reconhecendo que Kiara - como tantas de nós, encontradas em circunstâncias que parecem impossíveis de sobreviver - ainda é capaz de ter alegria e receber amor";
7 - Quanto ao trecho final, precisamos dizer que a autora até o consegue, mas a "alegria e amor" ainda assim chegam de forma bem agridoce e só é possível a partir da visão lúcida e cética da esperança em Kiara. E isso é bom, porque, se de um lado ao tentar ser feliz e seguir em frente, temos a essência do que é resistir, pois aos que não nos querem aqui, a maior resistência é continuar vivendo e quando possível, com um sorriso no rosto. É o que faz Kiara, em paralelo com a realidade de que sua história, na espécie de mundo externo que é a sociedade estruturada pelas pessoas brancas, o crime contra ela não causa qualquer impacto ou consequência. Esse é o estado geral das coisas, especialmente numa sociedade extremamente racista como a norte-americana;
8 - Mas para além da questão étnico-racial, o livro também percorre a questão de gênero. O mundo hostil ao feminino, o abuso de seus corpos, a objetivicação desses corpos, tudo isso é discutido com muita sensibilidade e força. Além disso, quando fala em mulheridade negra, a autora reforça a questão de gênero e reconhecendo que dentre todas as opressões, não há quem mais sofra que a mulher negra. Nesse mundo e nessas sociedades desiguais os corpos femininos negros estão no topo da pirâmide das opressões sofridas, de modo que Kiara expressa tal condição em uma denúncia forte do quão há ainda pela frente nas lutas por igualdade e respeito;
9 - Dito tudo isto, temos então uma leitura mais do que relevante. Kiara é uma personagem potente e de uma lucidez aterradora no modo como enfrenta as coisas, inclusive suas escolhas, mesmo as piores. E o mais aterrador nela é que os traços infantis e a ingenuidade característica desta época quase desaparecem, surgem apenas em pequenos flashes. No restante temos uma sobrevivente que tenta resolver as coisas da forma como elas surgem. Mesmo não sendo mãe, exala a figura materna a partir dos cuidados para com Trevor, tudo isso enquanto desvelamento dessa adultização precoce que cita Mottley. Assim Kiara é uma habitante de um mundo organizado por pessoas que não a querem, que estão se lixando. Há uma grande solidão na sua luta pessoal, este outro elemento desolador da narrativa.;
10 - Enfim, Criaturas noturnas é uma leitura eficiente ao propor resistência em paralelo ao que põe em xeque o tal sonho americano. Um sonho que é restrito alguns, pois que grande parcela de seus habitantes é excluída deste sonho. O livro nos entrega o retrato de uma sociedade cujas estruturas são baseadas na corrupção e no abuso dos poderes, numa estrutura cujo combustível é o racismo. Uma estrutura cingida em duas partes, os que estão incluídos e os que estão excluídos de certo projeto de nação. Justamente por isso, Kiara ao seguir sobrevivendo, ao enfrentar as coisas como elas são expressa em sua postura o que há de mais revolucionário: mesmo como medo, acuada e perseguida não se deixa intimidar, não desiste de seguir vivendo, um dia depois do outro.