10 Considerações sobre Bruxas, de Brenda Lozano ou yo no creo en las brujas, pero que las hay...

O Blog Listas Literárias leu Bruxas, de Branda Lozano publicado pela Companhia das Letras; no post de hoje as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro que adentra espaços místicos e ancestrais da cultura mexicana, confira:


1 - Embora, tomando as primeiras linhas do livro, tenhamos a impressão de adentrar num romance marcado por ação já que principia com um cadáver, trata-se de certa forma menos uma narrativa de ação, mas um resgate memorialístico que perpassa tanto pela cultura mexicana, mas especialmente da condição feminina nesse contexto, um contexto, diga-se, como o mundo geralmente o é para com as mulheres, hostil e violento... tais violências e crenças patriarcais é então o que nos surge através de suas duas narradoras...

2 - O romance, portanto, constitui-se de duas vozes distintas, duas vozes que ao mesmo tempo procuram trazer realidades distintas, a urbana e a rural, como em determinado momento perceberemos que ambas não somente encontram-se, mas também compartilham muitas coisas comuns, a principal delas, obviamente, a condição de mulher num contexto cultural marcado pelo machismo e pela busca e resistência da liberdade feminina, cada qual delas buscando-a com seu próprio jeito em paisagens distintas - pero no mucho...

3 - A obra abre-se então com a narração de Feliciana, mulher simples dos ermos rurais. Um mundo "distante" e com suas regras ainda muito antigas, tais como, a ordem estabelecida de homens curandeiros; essa é uma das tantas realidades que Feliciana enfrentará e sua narração, nessa percepção de memória, vai compartilhar sua jornada até tornar-se uma curandeira (bruxa) famosa reconhecida em suas aldeias e fora dela. Nesse sentido, sua voz evoca a ancestralidade, a proximidade com a natureza e também com suas crenças místicas e ritualísticas expressas em suas veladas...

4 - A outra voz busca pela urbanidade dos tempos contemporâneos. Zoé é uma jornalista que tal como Feliciana buscará o tom de memórias para resgatar suas vivências, sejam elas experiências positivas ou traumáticas. Zoé surge como o contraponto urbano e escolarizado de Feliciana, sua sintaxe numa linguagem mais próxima da culta, sua vivência entre a arte e a cultura moderna contrastando com a cultura um tanto mais primitiva da outra narradora; entretanto, a ideia de contraponto não deve ser observada a termo pleno, já que talvez uma das propostas da narrativa seja o de justamente demonstrar que tais mundos, o arcaico e o moderno, o de Feliciana e o de Zoé estão mais próximos do que se parece e pulsam em ressonâncias similares;

5 - Aliás, uma proximidade que a narração de ambas irá aproximar, até porque ambas se conhecerão e em determinados capítulos é possível mesmo observar e interlocução entre ambas numa espécie de diálogo de modo que Zoé pode ser vista como narratária de Feliciana e Feliciana narratária de Zoé. Aliás, se falamos da narração culta de Zoé, condizente à sua formação, o mesmo pode-se dizer da narração de Feliciana que afasta-se dessa norma culta, afasta-se de uma sintaxe mais elaborada para expressar-se por meio de uma sintaxe arcaica, dos ermos, das comunidades em que o espanhol, inclusive não seja a língua natural. Isso faz da leitura algo bastante dinâmico;

6 - Além disso, precisamos dizer que em ambas as narrações perceberemos um movimento semelhante. O olhar a outra, a outras que também constituem as próprias narradoras. Mesmo que tenhamos uma boa dose de memórias individuais em ambas, também é bem verdade que as duas ainda narram cada qual uma segunda jornada. No caso de Feliciana, para além da sua própria narrativa, do seu crescimento, das ausências que a constituem, narra de forma importante e referencial a trajetória de Paloma que menino era Gaspar e será descrito como uma muxe; O termo designa os meninos homossexuais e o tratamento cultural lhe dispensado nos vilarejos. É paloma que era o menino Gaspar a história paralela à de Feliciana. A morte, o assassinato de Paloma principia o romance e exerce o papel de novelo de Ariadne que vai sendo desenrolado em forma de narrativa através da voz de Feliciana;

7 - Já a trajetória paralela de Zoé está representada em sua irmã, Leandra, que de uma juventude rebelde e questionadora fará carreira promissora na fotografia. Até mais que no caso de Feliciana e Paloma, Zoé precisa construir-se a si em contraste com a irmã, contrastes distintos e que levam a caminhos opostos, inclusive nos sofrimentos por quais passam. Há certa reverência da irmã que narra ao olhar para tudo que Leandra é e o seu próprio ser. A identidade distinta de cada uma delas e os caminhos por quais cruzam no longo da vida entre perdas e ganhos;

8 - Mas são as perdas que nos chamam a atenção. Em comum às quatro personagens a condição feminina. Paloma que era o menino Gaspar, mas sim uma mulher, certamente quem está entre as quatro mais próxima da violência; a violência sempre lhe chega; Desde a infância dos distintos preconceitos à violência física e psicológica por quais passa em muitos momentos da narrativa, violência extrema que principia o romance, a última de tantas as outras sofridas no decorrer da vida...

9 - Violência que todas as outras conhecem bem. O mundo é hostil para com as mulheres - e infelizmente isso não é mera ficção - e todas elas sofrem. Os abusos sexuais se repetem, cada qual delas tem uma lembrança a compartilhar - Zoé parece-nos a sofrer menos nesse caso. Leandra, Paloma, Feliciana se não abusada, relembra abusos doutras, afinal, sua posição lhe traz a condição de muito saber. Não que ela não sofra violências, precisa enfrentar resistências, mulheres não deveriam ser curandeiras, conheceu parte de um casamento marcado pela degradação do álcool e da guerra... Zoé em seu projeto de tornar-se jornalista precisou lutar contra o machismo na profissão, precisou tomar decisões duras a uma mulher...

10 - Enfim, Bruxas entrega-nos uma impactante e de certa forma lírica reflexão em prosa sobre a condição feminina. Embora tenhamos aqui recortes de uma espaço específico de nossa América Latina, não significa que o seja tão diferente dos ermos e das metrópoles do restante do continente - e do mundo. A cultura tem se mostrado hostil ao feminino e Lozano trabalha isso com maestria, mesmo que, por outro lado a narrativa ao beber em certa ancestralidade reforce de algum modo o misticismo, especialmente o da intuição, o que poderia ser questionável. Contudo, essa é uma outra questão, o essencial é que a narrativa trabalha com muita maestria os pilares misóginos de uma sociedade em que ser mulher é muito perigoso.

:: + na Amazon ::

 


Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem