O Blog Listas Literárias leu O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas, de Haruki Murakami, romance até então inédito no Brasil, agora publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Potencialidade máxima da capacidade imaginativa humana, o Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas é destas narrativas que te transportam ao universo pretendido pelo autor, do mesmo modo que desfila uma delicada e bonita rede de influências e referências que atravessada pelo insólito de seus acontecimentos a passo que conduz suas personagens a novas descobertas, também conduz seus leitores a reflexões um tanto agridoces numa sensação ambígua entre a escolha da utopia e a melancolia de que esta só nos cabe na individualidade da consciência;
2 - Isso porque se de um lado o livro de Murakami aponta para o resquício da utopia, esta, porém, mantém-se apenas no campo do indivíduo, na consciência de seu narrador-protagonista, uma figura mundana que tem sua rotina atravessada por acontecimentos cada vez mais insólitos e inesperados. Aliás, Murakami é magistral na forma com que é capaz de produzir cenas que a despeito do caráter insólito, soam da forma mais natural possível. Isso é reverberado pela postura um tanto resignada, caracterizada pelos seus não sei e talvez diante dos acontecimentos mais estranhos que lhe sucedem; Ele é um calculador, profissão de base; trabalha para uma megacorporação, empresa que está em guerra com outra megacorporação numa luta pelo universo dos dados (aliás, é uma obra dos anos 80, contudo, ainda que possamos ver as marcas temporais de uma tecnologia um tanto distinta da nossa presente, conceitos e ideias por trás da relevância dos dados parecem-nos pertinentes ao presente). A imersão nesse universo das megacorporações, aliás, indicam-nos diferentes camadas de sociedade, a aparente e partilhada, que mal se tem visão na narrativa e uma intermediária-para-o-subterrâneo na qual o narrador viverá sua jornada;
3 - Aliás, aqui já nos importa tratar dos caminhos duplos trazidos pela narrativa. Num deles, o impiedoso País das Maravilhas é o mundo em que encontramos nossa narrador em sua função laboral que passo a passo vai sendo atravessada por eventos e acontecimentos estranhos. Poderíamos dizer que esta retrata "o mundo real" ou o mais próximo disso. Já O Fim do Mundo é narrativa que transcorre em paralelo, uma narrativa com marcas de fantasia trazendo ao leitor um local e espaço idílico desprovido das ambições, das angústias e das lutas que geralmente hão noutro espaço. No passo que avançamos pela narrativa mais e mais as duas jornadas insinuam-se em um encontro por vir. Como se estivessem de algum modo conectadas. Conexão, diga-se, que paulatinamente o leitor vai construindo, sempre conduzido pela narrador, obviamente;
4 - Tendo isso tudo em vista, podemos dizer que no seu conjunto a obra trata-se de Ficção Científica, e, inclusive, capaz de adentrar e expressar toda a dialética do gênero. O conjunto paralelo, aliás, embora com suas marcas e características de fantasia apenas entrega ao todo essa constituição de Ficção Científica uma vez que tanto a gêneses quanto a trajetória de ambos os gêneros, muitas vezes fundem-se, mesclam-se, aproximam-se e flertam, carregando sempre muita proximidade. Todavia, é na Ficção Científica que reside a centralidade das questões importantes da obra, especialmente as que especulam acerca da consciência, da cognição e dos mistérios que envolvem nosso cérebro e a memória;
5 - A bem da verdade poderíamos pensar que a narrativa adentra justamente à questão irresolvida da humanidade: o que é Eu? O que é a existência? Ela demanda um corpo? Ou é possível viver dentro da própria consciência? Nesse sentido, Murakami tenda refletir o que é a consciência do indivíduo, reflexão que a partir das experiências do Professor, o Ancião tentam mergulhar em diferentes mapas do cérebro e suas redes neuronais. Vale dizer que tal pesquisa, de ordem especulativa, muitas vezes se aproxima do que temos de estudos cognitivos, ora afastam-se disso. Ainda assim, é uma especulação muito interessante e não de todo afastada da ciência, o que torna a leitura ainda mais intrigante;
6 - Mas acima de tudo, o que Murakami nos oferece aqui é a construção, reconstrução e abordagem de um imaginário rico em imagens, conceitos e teorias. Um imaginário tão potente, que, como já o dissemos, transporta o leitor para este universo carregado de percepções. Aliás, as percepções, a construção de experiência, a própria experiência tão importante na narrativa e no experimento abordado, tanto que uma das hipóteses aventadas é justamente essa, nossa consciência é fruto nas nossas experiências - reais ou não, um processo de constituição contínua - e aí o desafio da pesquisa do professor; Talvez por isso a jornada paralela, a que toma a fantasia e a narrativa como integrante desta consciência confira ainda mais potência ao romance, pois está alicerçada justamente no fato de que - inclusive a ciência nos mostra - a ordenação desse caos por meio da imaginação e do narrar são traços indiscutivelmente humanos;
7 - Contudo, se o já falamos tanto das características da obra e e alguns pontos importantes, inclusive extratextuais, gostaríamos de destacar a partir de agora alguns pontos que consideramos importantes acerca do interno do texto. Primeiro é preciso destacar a impessoalidade que percorre ambas as jornadas internas do livro. Não há uma identidade, o programador, o professor, a neta, a moça da biblioteca, o guardião, o velho, o leitor de sonhos, as vidas são apartadas de uma identidade específica e isso nos parece importante. Ainda mais no fato de que os únicos nomes próprios a serem utilizados no romance são a objetos (marcas) e os das corporações em guerra. Isso é tudo muito emblemático, afinal, uma narrativa que trata do indivíduo de certa forma, mas um indivíduo de existência diluída perante as megacorporações, não mais que peças na engrenagem industrial da megalópoles;
8 - Bem verdade que há nomes próprios no romance, mas não mais que resíduos de memória a partir de outro aspecto belo da obra: suas influências e referências culturais, no cinema, na música e também na literatura. Veremos que o narrador é um leitor de mundo que por vezes o lê mais por meio dessas outras vozes que por seus próprios olhos, como veremos nas partes finais do romance. Nesse jogo todo de influências destaque para a playlist sonora e musical que vai sendo trazida com uma sensibilidade poética para a narrativa. Aliás, a música na obra ais que mera referência, mas constituinte de mundo;
9 - Por fim, as notas agridoces e melancólicas que dissemos já neste texto. Escrito numa época de muitas mudanças sociais e geopolíticas - se bem que, haverá algum momento do mundo que não o seja - o narrador mostra-se um tipo peculiar. Resignado. Coloca-se como um tipo comum incapaz de alterar o ritmo dos acontecimentos, pelo contrário, associa-se ao apocalipse para que possa assisti-lo da primeira fila. Nisso, opta, ao menos por algum estilo. Tudo isso parece-nos, reforça sua desilusão. Ainda que figura sem ambições, vive em si a ideia de utopia, talvez de um comunismo que desce a ladeira. É justamente essa utopia que se esvai a que tenta recriar, a que habita dentro de si. Uma utopia que existe tão somente na morte, ao menos no que parece evidenciar-se com as escolhas que se faz. Isso tudo, ao cabo da leitura nos deixa com sentimentos ambíguos e paradoxais;
10 - Enfim, O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas é prosa carregada de forte lirismo poético. Um convite à imaginação e ao imaginário, esta capacidade belamente humana que nos torna tão distintos. O insólito de Murakami é o insólito criativo, capaz de produzir cenas e imagens cativantes capazes de somar e contribuir ricamente para nossa própria consciência. Nisso, o livro é objeto de múltiplos poderes, nos permite ler a experiência, bem como é a própria experiência. Nesse sentido, trata-se de uma narrativa que nos proporciona o máximo de experiências incríveis numa jornada ao mesmo tempo onírica quanto sensorial.