10 Considerações sobre O gosto da guerra, de José Hamilton Ribeiro ou seria pior sem um repórter lá...

 O Blog Listas Literárias leu O gosto da guerra e outras reportagens da Revista Realidade, de José Hamilton Ribeiro publicado pela Companhia das Letras. No post de hoje as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - O gosto da Guerra e outras reportagens da Revista Realidade chega em nova edição publicada pela Companhia das Letras. A reportagem que nomeia a obra é uma das mais conhecidas entre os interessados no jornalismo brasileiro e nas imbricações entre jornalismo e literatura. A reportagem foi publicada em 1968 sob o título "Eu estive na guerra" na Revista e publicada em livro no ano posterior. Desde então o texto vem sendo bastante estudado; nessa nova edição além do acréscimo dos trechos de "a guerra é assim", continuidade da reportagem e ainda uma outra seção com mais textos de Ribeiro na Realidade. O livro fecha com um breve Patrícia Campos Mello;

2 - Aliás, nesse sentido poderíamos dizer essa cisão em duas partes, a da experiência do repórter no Vietnã e outras reportagens não faz uma obra marcada pela unidade em torno do título. Não se trata de todo modo da análise direta da guerra, mas o compartilhar da experiência de quem a vivenciou - e nessa vivência, o eclodir de suas análises. Já o restante dos artigos variam um bocado de temas, sendo um dos mais interessantes, e assaz cruel pelo fato de que a pretensa extinção dos coronéis já não verificada no texto de Hamilton ainda hoje não se vê distante de nossa realidade contemporânea, já que o que não falta nesse país é "coronel". Há ainda nessa parte artigos que desnudam a intimidade de Hebe Camargo, a experiência do repórter num chão de fábrica, um artigo acerca da experiência das escolas vocacionais em São Paulo e a narrativa dos primeiros transplantes de rim;

3 - Contudo, se de um lado não temos uma unidade no tema guerra, o que o livro tem como unidade é a forma, o texto de José Hamilton Ribeiro; o estilo, a estética que provavelmente legue ao autor sua relação com o literário naquilo que muitos denominam jornalismo literário. Independentemente do tema, da experiência a ser reportada, há unidade nos textos no aspecto da forma despojada e atraente de um texto que é único, aquilo que na literatura vai ser chamado muitas vezes de "estilo do autor". Seja falando dos dramas pueris de uma celebridade televisiva ou falando da sua perna que se foi, os estilo de narrar de José Hamilton Ribeiro é um estilo que é só seu;

4 - E creio que falamos uma palavra que está mais para a literatura que ao jornalismo: narrar. Mais que informar, relatar, reportar, o jornalista aqui investe-se num narrador. Um narrador-testemunha em primeira pessoa, mas muito mais um narrador que propriamente um repórter. Todos os textos aqui reunidos temos um narrador, um narrador hábil que faz uso das técnicas literárias na composição de seus textos. Temos a narração de um repórter que de certo modo é constituído soldado na Guerra do Vietnã. Como narrativa, a reportagem nos entrega tudo...

5 - José Hamilton esteve no Vietnã em 1967 e sua jornada para além da reportagem, tornou-se vítima da guerra ao ser atingido por uma mina terrestre que lhe amputou a perna. Na reportagem temos acesso a isto e às intenções do repórter, como ainda, tal qual um narrador, a emissão de suas opiniões acerca do conflito e ainda da postura norte-americana. Em muitos momentos esse narrador, especialmente pela tática do questionamento, colocará em questão a guerra, a política e a ideologia, ainda que o mesmo saiba equilibrar-se num terreno sempre tão perigoso quanto a mina que o acertou: a opinião;

6 - Aliás, aos poucos podemos depreender na reportagem sua simpatia ao questionamento da Guerra do Vietnã. A bem da verdade, a reportagem a despeito dos ares de aventura, vai se alinhando com as vozes que revelaram a vileza da campanha e ainda a disparidade do confronto e tantos outros dados e ações que sinalizam a barbárie do que ocorria lá...

7 - E não significa dizer que a reportagem se mostra partidária do Vietnã ou dos comunistas. Hamilton, que inclusive viveu sua experiência junto à Companhia D dos norte-americanos, entretanto não mascara a condição de invasor, a penúria em ambos Vietnãs... a corrupção que se introjeta e acima de tudo as mudanças sociais que se impõe com a presença invasora, inclusive trazendo à baila o que tudo isso também representou para a mulher vietnamita;

8 - E aí entra a importância da frase retirada de um texto do próprio Hamilton, de que se a guerra é ruim, será ainda pior sem o jornalista para cobri-la. Diríamos mais, sem um jornalista que conscientemente ou inconscientemente saiba que a literatura constitui-se dos mais fortes protetores da memória. A aproximação do gênero jornalístico com o literário que é feito por ele, desconfiamos, também é fundamental para tornar o texto perene já que a literatura é indispensável na tarefa de não permitir que esqueçamos nossas barbáries, de modo que a aproximação do texto ao fazer literário confere-lhe força, e podemos perceber isso na reportagem de Hamilton;

9 - Aliás, é possível que grande parte das pessoas, não integrantes do meio mais curioso da história do jornalismo e da literatura vá associar muito mais a figura do repórter ao senhor simpático com sua reportagens rurais que a um correspondente de guerra, campo que ele não só foi um dos percussores no jornalismo brasileiro, como, pagou um alto preço nessa sua cobertura, podendo narrar diretamente da linha de frente aos centros médicos por quais passara em sua recuperação e tratamento, centros médicos também constituintes dessa imagem de guerra, uma guerra em todas suas nuanças...

10 - Enfim, o livro não apenas reproduz importantes reportagens publicadas numa década muito peculiar do mundo e do Brasil (na verdade, nosso post é sempre muito curto para tudo aquilo que gostaríamos de escrever, como as nossas tentativas de observar pelo texto de Hamilton um pouco do que pairava sobre o país naquele tempo. É possível perceber o tom cuidadoso ou mesma certa distância do decorrer histórico do país em uma de suas décadas mais sangrentas, mas isso, talvez, seja pauta para um novo texto) mas é um documento que nos ajuda a olhar não apenas para o tempo, mas para os acontecimentos conturbados desse tempo. Ótima leitura para quem se interessa pela história da guerra, pela correspondência de guerra, pelas imbricações entre jornalismo e literatura... em vista disso, não há como discordar que onde haja a infâmia e a abjeção das ações humanas, caso da guerra, menos mal que lá estejam os correspondentes os narradores, os repórteres... eles são indispensáveis para manter nossa memória lúcida e viva.

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