O Blog Listas Literárias leu Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eraldo sobre o livro ou reflexões sobre o dianho, o cujo, o temba, o bode-preto, coisa-ruim, capeta, que-me-diga... confira (mas, atenção, por se tratar de obra canônica e pelas demandas da abordagem, consideramos Ourique (2016) que diz "clássicos não têm spoiler" de modo que em nossa resenha você poderá se deparar com muitos deles):
1 - Grande sertão: veredas certamente está entre as principais obras da literatura brasileira, quando não, pode rivalizar em muito com as obras de Machado de Assis pelo topo, o que significa a nós sempre um desafio ao abordar uma narrativa tão falada e discutida, especialmente quando tratamos do espaço da publicação de um blog. Todavia, antes de atirarmo-nos a esse desafio, gostaríamos de partilhar nossa experiência com a leitura desse romance. Esta resenha é fruto de uma nossa segunda leitura do romance. A primeira leitura ocorreu há cerca de oito anos para uma disciplina da graduação, leitura feita em um exemplar antigo que restara do esquecimento da devolução para a biblioteca da escola de Ensino Médio; À época, coisa que assustadoramente ultrapassa vinte e cinco anos. Algo comum essa experiência e choque na primeira tentativa de leitura; quando o li, paixão pela narrativa; já esta segunda leitura, algo, comum no processo, o olhar encontra novas - e tantas coisas não vistas na primeira leitura; novas descobertas que ampliam a fascinação pela magnum opus de Guimarães Rosa; tal encantamento provavelmente se refletirá no decorrer desse texto;
2 - No caso dessa nossa segunda leitura, vale ainda destacar, realizada da edição da Companhia das Letras (2019); tal edição adota como referência a publicada pela Livraria José Olympio (1958) tido como "texto definitivo". Nessa edição (2019), vale destacar ainda que para além do texto de Grande sertão: veredas temos a seleção de um vigoroso e importante conjunto de textos constituintes da imensa e rica fortuna crítica da obra; entre os textos, encontramos os trabalhos de Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Silviano Santiago entre outros importantes nomes dos estudos literários. Além disso, cumpre rapidamente dizer do projeto gráfico da edição, cuja capa foi elaborada a partir de uma reprodução em bordado do avesso do Manto da apresentação, do renomado artista Arthur Bispo do Rosário; no manto, nomes dos personagens da narrativa; dito isto, cremos, é possível partirmos para nossas reflexões sobre a obra;
3 - Partimos do princípio. Numa breve síntese a obra narra a jornada de Riobaldo, homem com algum grau de instrução que entrará para a vida de jagunço peregrinando pelo sertão. Como grande mote da narrativa talvez dois pontos fundamentais ao sertanejo Riobaldo, ambas ligadas à dúvida, se teria ou não realizado o pacto com o Diabo, se pactário ou não; e especialmente a dúvida a respeito do intenso amor por Reinaldo, menino que conhece na infância, jagunço que reencontra pelas veredas do sertão, a quem, no íntimo chamará de Diadorim, sua neblina, seu amor. A impossibilidade desse amor, a fuga de entender-se apaixonado por um homem será seu tormento, mesmo após a trágica cena final, a revelação de que Diadorim é uma mulher; já não importa mais, o amor permanecerá uma impossibilidade, visto o desfecho da estória de ambos, um castigo? Todavia, o que importante é que em Riobaldo, e ao leitor neófito à obra, do princípio ao fim a indagação que persiste é a impossibilidade do amor homoafetivo do protagonista; amor proibido, ilegal, ilegal sob que ordens? que premissas? Talvez aí, quem sabe, mais uma das razões da viagem religiosa e as tentativas do narrador de entender-se tanto com Deus quanto com o Diabo. O demo existe? deus existe? tudo isso inquerenças do narrador que usa dos destempos para ir e voltar suas estórias até a contação final (aliás, a literatura assim já o é, mas vale reforçar e Grande sertão é ótimo exemplar, o que não nos faltam são portas e veredas a trilhar na interpretação de um romance que tal como o sertão é vasto mundo. Inclusive partilho aqui uma reflexão inicial que fiz pensando o narratário da obra);
4 - Provavelmente o primeiro estranhamento de leitores iniciantes nesse romance de Rosa seja algo que constitui sua essência: o vanguardismo. Grande sertão: veredas é uma narrativa de vanguarda e a leitura de uma obra com tais intenções, tal como para dançar créu é preciso ter disposição. A leitura de uma obra de vanguarda prescinde de um contrato de leitura específico, o leitor entra sabendo e querendo entrar na narrativa e isso talvez explique que muitas vezes os estudantes de nível médio "corram" da obra; isso porque é leitura exigente em todos os seus sentidos. Em se tratando de literatura nunca se é sobre a história que se conta, mas especialmente sobre como se conta. Em qualquer obra assim o é, contudo, nas narrativas de vanguarda esse como contar é radicalizado. E Rosa faz isso com perfeição, quebrando a sintaxe, navegando entre arcaísmos e neologismos, dando poder à oralidade (especialmente à oralidade do sertanejo). Isso tudo já representa um desafio consciente do leitor, mas não paramos por aí, já que, a despeito do contraste da simplicidade matuta do sertanejo, adentramos às mais altas questões das filosofias e das metafísicas... Guimarães Rosas penetra os crespos dos homens, mergulha em seus avessos numa tentativa de entender seus dilemas;
5 - Desse modo saímos de algo específico, uma linguagem única e marcada pela vanguarda e entramos no universal, nas angústias que infligem à humanidade seus medos - e também suas esperanças. Nesse sentido não se pode dizer de uma obra importante apenas ao Brasil, mas uma narrativa importante ao cômputo universal de modo que não é ousado tampouco errado dizer que Rosa está entre os grandes nomes do pensamento, sua literatura mostra-se rica e importante como qualquer outro dos grandes nomes do panteão da literatura universal;
6 - O livro como sempre lembrado inicia já de forma arrebatadora com os inventos rosianos, - nonada. Palavra desconhecida que principia o desfiar da narração do romance. E aqui entramos numa questão importante, o narrador, o narrador-protagonista da obra: Riobaldo, o Tatarana, o Urutú Branco. Um narrador consciente e conhecedor habilidoso das táticas de contação de suas estórias. Habilidoso cerzidor do destempo, indo e voltando às narrativas num processo de costura diante da grande indagação que lhe corrói não apenas as lembranças, mas a existência: o demo, existe ou não? De certa forma é a pergunta que se não condiciona a narrativa, a impulsiona. Percebemos em sua natureza de narrador autoafirmado que essa questão é a que motiva na narração, mais ainda do que contar o amor interditado por Diadorim. E aqui temos uma questão importante a considerar. Muitas vezes a narração de Riobaldo é tida como um grande monólogo, isso inclusive visto por interpretes relevante da obra; contudo, considerar a narração de Riobaldo um monólogo ignora coisas importantes;
7 - Primeiro, nos destempos que se constitui a matéria de Grande sertão: veredas temos o quando se narra? Riobaldo já está velho, casado com sua Otacília, sua condição, embora não se diga, de um coronel que depois de sua vida no cangaço herdou as terras de seu "padrinho" Selorico Mendes. A narração se dá primeiramente a um "leitor" específico, senhor, doutor, homem de muitas instruções e diplomas, o narratário a quem Riobaldo mergulha em suas reminiscências memorialísticas. O narratário (no link acima aprofundo detalhes desse personagem) não se trata de simples ouvinte, é alguém a quem, parece-nos, Riobaldo a despeito de suas "certezas", ainda não tem resoluta sua dúvida, o demo, existe ou não? ele é pactário ou não? de modo que tal interlocutor lhe será uma voz de autoridade quanto à questão; Riobaldo quer ouvi-lo (e diga-se, o narratário mantém importante silêncio quanto a isso), que afirmar sua suspeita, quer ratificar por meio do narratário sua liberdade... não está preso ao Diabo... aliás, e aqui uma questão essencial: não cremos em monólogo, temos, ainda que bastante disfarçado, um diálogo. Há diálogo entre o visitante - que ficará por determinação do narrador, três dias em sua propriedade - e o narrador embora o narrador suprima a voz do narratário; mas que ele "fala", "fala", pois é possível recuperar tal em muitos momentos em que a narração de Riobal responde a algo dito pelo narratário mas que permanecerá no implícito para demais leitores como espaços a serem completados; e o diálogo tem como objetivo justamente esclarecer ao narrador se o demo, existe ou não? se ele teria ou não firmado pacto nas Veredas Mortas;
8 - Tal dúvida então se mantém do princípio ao fim da narração que pensamos nessa narração destempo; isso significa dizer uma narração não linear, de contos e recontos, de idos e desidos. O narrador tanto prepara o interlocutor para seu desfecho trágico como retrocede ou avança o tempo de acordo com os interesses do narrar; pode assim cortar contagens, inserir outras de tempos diversos o que só amplia a necessidade de atenção máxima dos leitores; aliás, tão somente o tempo e todas as suas implicações demandaria e renderia importantes aprendizagens não apenas sobre o livro em si, mas sobre narração, literatura e mesmo, sobre o tempo... o tempo, o destempo é matéria elementar da narrativa e o narrador Riobaldo consegue trabalhar também aqui como maestria;
9 - Mas como dissemos, debater pensar e refletir sobre o livro é destas missões que mal cabem em um post de blog, tanto o já falamos e ainda o tanto poderíamos falar, seja em suas virtudes, também nos seus elementos que no hoje poderíamos questionar; o romance, mais que falar sobre jagunçagem trata das relações de poder e masculinidade, afinal, mais que sobre o cangaço, fala-se aqui da guerra e essa é uma instituição intimamente ligada às fragilidades do masculino e história humana de opressão ao feminino; Mesmo Urutú Branco, Zé Bebelo, Medeiro Vaz contrapartes do endiabrado Hermógenes, o qual Riobaldo e Diadorim buscam vingança, um abjeto monstro no trato com outrem, mesmo os "bons cangaceiros" e sua ética para com as mulheres apresentam-nos um olhar opressivo ao feminino e que desnuda as "liberdades" da guerra; nesta segunda leitura o olhar racial sob olhar de Riobaldo também nos surgiu de modo crítico; para além disso, temos não apenas uma jornada metafísica, mas ainda um verdadeiro estudo dos princípios da violência entranhada na constituição do humano e seus crespos; esse aliás, aspecto que nos entrega das cenas mais memoráveis da ficção, seja no julgamento de Zé Bebelo, no fogo na Fazendo dos Tucanos e mesmo na batalha final... a violência como alicerce da história humana esta arraizada nas estórias de Rosa;
10 - Enfim, pouco falamos e muito ainda teríamos para falar ou aprofundar aqui nesta publicação, mas cuja característica não mais comporta. O que nos resta é dizer e reforçar dos tantos e tantos benefícios de uma leitura que a despeito da superação do estranhamento inicial nascido pela sua estética de vanguarda é das mais fantásticas narrativas da literatura universal. Riobaldo, uma espécie de John Wick nacional, (anterior ao próprio) é matéria vertida em barro bruto; é um romance das brutezas do homem, dos seus crespos onde para além da utopia reside seu grande drama; obra que trata da violência de um mundo que tal como diz seu narrar repetido, ensina-nos viver é mesmo muito perigoso.
O grande Sertão Veredas encantou o Brasil, e era a diversão esperada pela maioria das famílias ao chegar o anoitecer. E ninguém queria que acabasse.
ResponderExcluirEu também li o Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Buscando reviver a novela, e parecia que lia coisas novas.
ResponderExcluirQue legal esse compartilhar, creio que demonstras bem esse belo poder do livro, como demonstra as distinções entre adaptação e obra original.
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