10 Razões para ler O avesso da pele nas escolas, sim! #QueimarLivrosNuncaMais

 Não é de hoje que a literatura é vista por sua capacidade de por em debate questões cruciais à sociedade, tanto para gerar reflexões ou para causar incômodo àqueles que escondem-se sob o manto da hipocrisia ou das falsas moralidades. Parece o caso da direção da Escola Ernesto Alves de Santa Cruz do Sul que por meio de um vídeo descontextualizado e desconsiderando o conjunto da obra o Avesso da Pele, de Jeferson Tenório utilizou as redes para pretensamente devolver a obra ao MEC. O vídeo é demonstração absoluta do retrocesso social que vivemos nos tempos de hoje. Mais assustador é que provavelmente os que apoiam ou concordam com tal visão são os mesmos que bajulam um certo cara aí, talquei, que a cada 10 palavras que fala, dois terços é palavrão e o restante é idiotice. Isso sem falar de que o orgulho dessa gente é p mesmo que disse "pintar um clima" para uma criança e suas recorrentes metáforas enamoradas. Mas o dito cujo não é o ponto aqui, mas sim o grave problema presente no vídeo, principalmente por vir de alguém de que espera-se intelecto suficiente para compreender tais questões e fazer jus e pertencimento ao campo da educação. É uma falência danada quando uma pessoa abdica da razão e dos compromissos com a educação e consequentemente com a leitura e a literatura seja tão rasa em nome de manter-se fiel a uma bolha de ignorância, hipocrisia e falsos moralismos. Por isso, nesse post selecionamos 10 razões para ler O avesso da pele nas escolas, sim!:


1 - Antes de mais nada, precisamos contextualizar a partir do próprio vídeo. Como a própria pessoa declara, a obra trata-se de um exemplar destinado à leitura de estudantes do Ensino Médio. Ensino Médio. Sim, nessa etapa da formação imagina-se um leitor com capacidade para leituras complexas, inclusive que adentrem à questões mais íntimas e profundas da existência humana. Não há de modo algum de se falar inadequação, como na sequência deste post demonstraremos com mais argumentos. A senhora simplesmente retira uma parte da obra - diga-se que parece até mesmo haver prazer em sua narração pautada pela busca do efeito - sem sequer analisar ao conjunto e ao que se propõe Jeferson tenório em O avesso da pele;

2 - Dito isso, e penso que nenhum professor de literatura dentro da razão e do bom senso dirá que há inadequação da obra à etapa sugerida, é preciso destacar que O avesso da pele não só e feito com esmero estético e profundidade que o torna uma das principais narrativas contemporâneas, como sua recepção pela crítica e pelos leitores (os de verdade, com capacidade de interpretação e letramento literário) tem sido excelente, inclusive recebendo o prestigiado Prêmio Jabuti;

3 - Mas esses são elementos alheios à obra, e muitas das qualidades e relevâncias da leitura de O avesso da pele o dissemos também na resenha da obra aqui no Blog. O livro aborda com uma sensibilidade incrível a problemática do racismos estrutural presente na sociedade brasileira. Não estaria aí o incômodo com tal leitura por parte dessa diretora? A escolha do trecho a reclamar, como bem sabemos nos estudos da linguagem, não é aleatória. Nesse caso, pode ao mesmo temo serviço como apito para cachorros - acho que podemos atualizar termo para berrante para gado -, como denunciar o que de fato gerou estranhamento e incômodo à leitora em questão (nesse sentido os formalistas russos confirmariam mais uma vez o sucesso literário de Tenório). O absurdo para ela, certamente está no cerne das relações étnico-raciais desse país carregado de preconceitos e na verdade, em alguma maneira a teatralização de sua narração inconformada é também mais um sucesso do livro;

4 - Além disso, tratemos aqui um pouco mais sobre o recurso recorrente dos canalhas e hipócritas que sacam sempre do card da linguagem o do vocabulário chulo para atacar este ou aquele trabalho. Basta algo incomodar aos falsos moralistas e hipócritas e lá vem aquele papinho que este ou aquele texto fere a moral e os bons costumes, que violenta a boa educação. Que visitem a casa de carvalho. Como professora, tal pessoa deveria ter a obrigação de compreender a linguagem ali utilizada e a coerência que carrega para com todo o enredo e a temática da obra. Desconsiderar isso é pura má-fé e desejo infindável de lacrar para as bolhas das pretensas famílias de bem que não resistem aos escrutínios da realidade - mesmo que essa realidade muitas vezes permaneça muito tempo às sombras;

5 - Aliás, quanto ao pretenso grande incômodo destas pessoa, a linguagem chula, seus palavrões e suas indecências, como professor de literatura pergunto-me, essa pessoa já leu alguma coisa na vida? Conhece os clássicos da literatura brasileira que habitam nossas bibliotecas? Sei que o que falo aqui carrega seus perigos, essa gente adora queimar livros, mas creio que ser importante traçarmos aqui algumas comparações para demonstrar o disparate criminoso dessa publicação. Por acaso essa escola vai retirar de sua biblioteca obras como O cortiço? Vai banir Grande sertão: veredas por certas linguagens que Rosa utiliza? Vai banir das estantes até mesmo Iracema, afinal, não seria indecente o termo "virgem dos lábios de mel"? Vão proibir Macunaíma de "Brincar", outra grande leitura recomendada para o ensino médio? O ateneu, Rubem Fonseca, prezada direção, não sobrará um...

6 - E ainda no campo do vocabulário, a escola realmente está preocupada com o vocabulário ou o incômodo é outro? Fontes ligadas ao Listas Literárias comentaram, por exemplo, quem eventos da escola se ouviram funks cuja letra continha vocabulário problemático. E não nos entendam mal, não criminalizamos aqui o gênero, há exemplos horríveis de canções tradicionalistas gaúchas que por exemplo, comparam uma mulher às éguas. Baitaca, ídolo pop de "O fundo da Grota" é o mesmo que canta "Aventuras do Tico Loco". Na música sertaneja, então, o que não falta é música apóloga ao feminicídio. Há funks capazes de alertar, de abrir para reflexão, músicas de outros gêneros também, como, por exemplo, um bom rap dos Racionais. Entretanto, nossas fontes indicam que não se trata desse tipo de música, mas sim de porcaria alienante e objetificadora, que a mesma direção que ataca uma das principais obras literatura nacional contemporânea, se mostra leniente e festiva;

7 - A partir desses dois últimos argumentos, creio, a questão mostra-se ainda mais problemática. Não tem como não vir à cabeça o questionamento: teria a cor do autor e o tema abordado pela obra influenciado a indignação da direção da escola? Afinal, certamente há na biblioteca da escola outras obras com palavrões e cenas que precisam abordar a questão sexual. Na verdade, o Naturalismo é um dos momentos literários a ser estudando no Ensino Médio, e não há obra naturalista sem essa abordagem. Ou a escola não trabalha literatura? Desconheço uma biblioteca que não tenha Jorge Amado, Rubem Fonseca, para ficar por aí, antes que esses falsos moralistas queiram queimar mais livros. Mais uma vez: O que realmente incomodou?

8 - Para além disso, essa turma realmente convive com adolescentes? Desafio qualquer pessoa a desmentir que as tais e incômodas palavras sejam desconhecidas do vocabulário dos jovens estudantes de Ensino Médio. Em que mundo vocês vivem? Até mesmo respondo, no mesmo que o nosso. Só a máscara da hipocrisia sustenta essa histeria com a referida passagem. Vivemos numa época que necessitamos cada vez mais de obras que proponham e alcançam algum grau de reflexão e que efetivamente proporcionem não apenas o letramento literário, mas também o letramento racial, pois precisamos e muito aprender e compreender as raízes estruturantes dessa abjeta chaga que é o racismo;

9 - Gostaria de finalizar justamente dessa forma, trazendo razões elementares e fundamentais de por que a leitura de Jeferson Tenório é mais que necessária nas escolas. Sua abordagem é lúcida, por vezes, até desesperançosa diante ao estado das coisas. Sua narrativa reflete o quão profundo está enraizado o problema e o desfecho do romance é exemplar nisso. Além disso, ele passa longe de querer nos entregar soluções fáceis, e problematiza a questão sem que a narrativa torne-se mero panfleto. Demonstra no decorrer do romance que o problema é complexo e cujos caminhos ainda precisam ser tratados. Talvez a parte de desencanto que há na narrativa se justifique ainda mais com a reação acima exposta;

10 - E para finalizar, mais absurdo ainda é que talvez a voz que denuncia tenha no máximo passado o olho perdidamente por alguns palavrões que talvez lhe viessem a calhar na suma vontade de lacrar abjetamente em busca de sucesso em sua bolha ignóbil de obscurantismo e má-fé. Se realmente tivesse lido - ou ainda entendido as múltiplas possibilidades de leitura e interpretação - a obra em seu todo, talvez observasse que uma outra frente de discussão extremamente relevante presente na obra: a educação e o contexto desafiador do momento com alunos cada vez menos interessados. Impossível a um bom professor não ver-se também no protagonista do romance, também professor. Um professor que entende dos nossos desafios diários que estão longe de ser um palavrão aqui e acolá. Se tal pessoa tivesse capacidade para tal leitura, desprendida de convicções que não passam de névoa e combustível da alienação que tomou parte do país, perceberia ainda no livro, também um aliado de nós, professores. O magistério, a docência em suas questões mais desafiadoras estão abordadas no livro e não apenas merecem nosso respeito, como podem alertar a professores e alunos os poderes maléficos do desencanto. E não é difícil se desencantar, especialmente no poço sem fundo que estamos entrando e parece que não está fácil de sair.

#QueimarLivrosNuncaMais      


3 Comentários

  1. Perfeito. Pleno acordo.

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  2. Excelente abordagem. Não li ainda o livro, mas vi o vídeo. Confesso que fiquei assustada, mas logo pensei em outros livros que já li e só fiquei com desejos de conhecer este Prêmio Jabuti.

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    1. Pois é, numa leitura completa da obra, se perceberia que a passagem reclamada estão ko contexto da obra, mas de longe não se trata da essência da obra, essa, muito importante

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