10 Considerações sobre O avesso da pele, de Jeferson Tenório ou porque o sol vai explodir um dia

 O Blog Listas Literárias leu O avesso da pele, de Jeferson Tenório publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 – Você vai ler esse livro e quando chegar próximo de seu fim, vai se sentir sufocado. Vai sentir a angústia brotar do âmago de seu ser e, inevitavelmente, pode ser que você chore. Você terminará a leitura então com a certeza de ter sido atropelado por uma carreta. Dessas bi-trem. Você será moído, retorcido, imerso. Você terá visto tanta, mas tanta coisa, que você se escandalizará. Porque você se escandaliza, você se importa. Você se dispôs, você quis se permitir a ouvir o que, para você, talvez sejam discursos distantes. Ou pode ser ainda mais intenso. Você pode ser um duplo de Pedro, de Henrique. Como eles, talvez você saiba todos os riscos presentes quando luzes vermelhas e piscantes se aproximam. Como eles, sabe bem o que olhares atravessados realmente significam. Sabe exatamente a verdade por trás de cada negativa. Talvez você seja negro, negra... irmãos de dor do professor Henrique, protagonista desse romance; talvez você seja branco. Que bom que também talvez você seja branco; que você ao final também se escandalize. Porque no final da leitura seremos todos nós um pouco de Henrique. Suas identidades se alternam, uma alteridade em que você tomará consciência do gigantesco abismo em que estamos;

2 – Dentre todas, mas talvez a maior virtude de O avesso da pele esteja em sua estética. Uma estética que te joga pra dentro da narrativa. Você será a própria narrativa, de certa forma. Narrado por Pedro, uma voz em primeira pessoa que praticamente desaparece para dar vida a uma segunda pessoa, o romance é mais do que imersivo. Ele é também o leitor. Você. Marcado por uma prosa radicalmente lírica, Pedro através de objetos do pai, morto em uma operação policial, remonta a vida de Henrique e a sua própria relação com o pai. Ambos atravessados pela cor da pele num país extremamente racista. “Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim” diz ele, Pedro. “Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. Por isso não estou reconstituindo esta história para você nem para minha mãe, estou reconstruindo esta para mim” ele revela. Uma revelação que vai fundo nas intenções do narrador, pois é por esta reconstrução que ele não apenas tentará entender o pai, mas para além disso, uma forma de denúncia, mas não uma denúncia panfletária, e sim um engajamento e uma luta urgente;

3 – Pedro ao fim diz “não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé”. Uma demonstração do domínio e das intenções literárias do romance. Um diálogo com o que diz Bosi sobre o poder da literatura, “em ser mentira, carrega a verdade mais exigente”. Assim, logo você entenderá tal relação. As verdades nesta “verdade inventada” por Pedro são destruidoras, abomináveis. Não serão poucos os momentos que você sentirá a garganta fechando, aquele sentimento de estar “embuchado”. Você embargará a voz e muito provável, perceberá os olhos úmidos. Nos fracassos de Henrique testemunharemos na verdade sua vitória sobre o resto. Sobre a sociedade. Esta sim, ignóbil, estruturalmente preparada para dividir, nunca unificar, congregar, incluir, compartilhar, etc.;

4 – Mas um alerta. Você será Henrique. Esse é um jogo muito forte estabelecido pela estética. Pela voz que te joga dentro do romance. Você se sentirá tentado a dizer que identificou em você tantas coisas de Henrique. Tantos fracassos, desilusões, angústias. Você quase pensará poder ser Henrique de tão identificado que se sentirá. Em muitos casos, talvez você de fato possa dizer isso. Dizer que Henrique é um irmão seu porque vocês passaram pelas mesmas coisas. Pelas mesmas blitzes. Mas é aqui que você, talvez, compreenda também que por mais que partilhemos as mesmas dores, será impossível no todo, você ser Henrique. A cor da pele do protagonista a certa altura, por mais que a narrativa nos jogue para dentro, não nos permite dizer que compreendamos ou que nos identificamos com a história deste professor. Porque descobriremos o abismo gigante construído entre negros e brancos nesse país. No sul do país, de forma mais agravada segundo o romance. É inconcebível e inaceitável as vísceras desnudas das estruturas racistas e desiguais nesse país. Por mais que o autor nos coloque dentro da obra, quando Henrique e todos os outros negros e negras do romance escancaram a rotina do absurdo, aí, nesse caso, você que talvez seja branco, só poderá se escandalizar. Se chocar. Se indignar. Mas desconfio que você, só pelo fato de ler este livro também deseja que tudo isso mude, que você saiba o ridículo e absurdo dessa experiência. Ainda assim, por mais alteridade que consigamos nos permitir, é aí, é nas experiências dos racismos sofridos que não podemos dizer “eu te entendo”. Porque, não, não entendemos. E justamente por isso, para você, que é branco, que é branca, é ainda mais importante e necessária a leitura de O avesso da pele;

5 – Você compreenderá o que quero dizer aqui. Compreenderá após sua leitura, as palavras neste post, talvez desconexas. E imagino que concordará com a pungência deste romance em todos os seus aspectos. É provável que você o considere um dos mais importantes de nossa literatura. De nossa literatura recente, nem se fala. Você encontrará na leitura o vigor dos grandes romances. Será tragado pela estética que partilha com você a experiência. Que jogada de mestre. Pedro procura pelo pai, mas também procura por você. Quer que você sinta, que você veja, que você também seja tanto quanto mais possível, Henrique. Nesse jogo tantas e tantas possibilidades de construir uma familiaridade tão, mas tão íntima com a narrativa, que você nem sempre saberá onde ela começa e você termina;



6 – E riqueza é o que não falta para te tocar. Diversas possibilidades. Um romance que se tem, claro, um farol apontado para os problemas estruturais de uma sociedade doente, é mais do que tudo, universal, pois entra no íntimo de todo e qualquer ser humano. Entra onde a cor é irrelevante, onde nós somos. Nosso avesso. “É necessário preservar o avesso. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo do mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos”. Essa uma mensagem para todos vocês, com as diferentes implicações que disso partem;

7 – Você, além disso, retomará a infância. Por mais que infâncias carregadas de identidade, infâncias que ecoam em você. As tantas primeiras descobertas, como o sol que explodirá e colocará uma pedra no peito de Henrique. A infância, as formas com certas infâncias são abandonadas, aliás, será mais uma das tantas possibilidades de interpretação do romance. Você se verá nas infâncias trazidas e tudo no que isso impacta. Conectará infância e memória, a reconstrução de uma memória inventada como observamos na narração de Pedro, Ademais, infâncias abandonadas de certo modo. Infâncias atiradas à sorte por uma sociedade que torna invisível muitas destas infâncias. E por mais que a cor da pele seja, obviamente, central, infâncias também marcadas pela classe. Há ao fundo, sempre pairando como uma nuvem de proteção o quanto a sociedade estruturada em suas classes, mantida por uma classe privilegiada, aprofunda mais violentamente o racismo que longe de ser uma questão individual deste ou daquela racista, é na verdade algo entranhado em tais estruturas. Montado e sustentado para ser e continuar de tal jeito;

8 – Virtuoso em tantas qualidades, você ainda perceberá que mesmo quando a cor da pele atravessa, não atravessa todos de uma mesma forma. É o cuidado que Tenório tem e mantém por todo o romance de, por exemplo, mostrar que para uma mulher negra o racismo se dá de forma distinta, não menos violenta. Pelo contrário. Você perceberá que na verdade, no caso delas, as coisas podem ser ainda piores, mais trágicas. Tratadas como fetiche, objeto. Excluídas da sociedade das possibilidades... no romance você verá como tudo isso pode destruir almas humanas;

9 – No aproximando do fim, o que se queria demonstrar aqui e você, depois da leitura, é provável que concorde, estamos diante de um romance primoroso. Primoroso da forma como nos traz a resistência. Se não aquela resistência revolucionária e utópica, a resistência concreta, a resistência que a despeito dos tantos fracassos resiste porque insiste. Porque, como descobrirá Pedro sobre o pai, resistência é não abandonar o barco, é ser “aquele que resolve, ou por ingenuidade ou por imbecilidade, pegar o touro à unha, permanecer na linha de frente”. A fala é sobre a relação de Henrique com a escola, com a educação, mas pode e deve ser ampliada. Aliás, você também achará ao final que este é um romance dos mais lúcidos sobre a questão da educação e de seus reais problemas;

10 – Enfim, você lerá O avesso da pele e será atravessado pela leitura. Você não saíra igual depois de sair dela. Você entrará na leitura por diferentes razões ou buscas, e por um bom tempo você será a própria leitura. Você será no que você puder ser, Henrique. Você fechará o livro com a certeza de que algo precisa feito. Pode começar por você e quem sabe chegar a tantos nós, porque sim, um dia o sol vai explodir e é preciso que até lá tornemos este mundo mais justo e mais igual.

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