10 Considerações sobre O natimorto, de Lourenço Mutarelli ou devaneios, devaneios, devaneios

O Blog Listas Literárias leu O natimorto, de Lourenço Mutarelli publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:



1 - Publicado originalmente em 2004 pela DBA e relançado pela Companhia das Letras  em 2009, O natimorto - um musical silencioso é o segundo livro do autor é mais uma jornada ao estranho, caótico, soturno e repletos de camadas mundo da literatura do autor (Mutaverso ou Mutarelliverso?). Do mesmo modo com as marcas de recorrências e de rupturas que são colocadas em cada obra do autor, um jogo ambíguo entre repetições e inovações, ou seja, tudo aquilo que torna sua obra peculiar e única;

2 - Como vemos em suas obras, há também nesse livro a procura constante por dilatar estruturas narrativas ou na procura por novas-velhas formas de narrar. O subtítulo meio que escondido dos elementos paratextuais já trata disso, musical, teatral, a bem da verdade. Mais que um romance, na construção desse livro temos a imbricação fluída e histórica entre drama e poesia, todavia, morta a métrica como bom poeta de seu tempo. Toda a narrativa se desenvolve numa espécie de peça teatral muitas vezes ou atravessada pela lírica ou por pequenas aparições de seu narrador que no decorrer do livro é tanto narrador quanto eu lírico;

3 - Sim, parece-nos que Mutarelli tem imenso prazer em jogar com toda e qualquer fronteira estrutural, enfim, um grande entendedor da linguagem que bem sabe que esta aí está para ser constantemente alterada, mesclada, violada, pois é o movimento que a faz o que é: linguagem. Mas não faremos aqui uma avaliação de linguagem, ressaltamos apenas o quão gosta o autor dos jogos da linguagem e os joga a cada novo livro, criando a seu modo suas próprias "regras" desse fantástico jogo que em sua instância mais plena da abstração e da complexidade chamamos de literatura;

4 - A narrativa percorre o estranho encontro entre "O Agente", protagonista, narrador, eu lírico, e "A Voz da Pureza ", peculiar cantora lírica que está para ser agenciada pelo homem ao ser apresentada a'O Maestro. Há no princípio de encantamento devoção natural dele por ela, que o leva a separar-se da esposa e ir viver com A Voz em um quarto de hotel;

5 - Nessa relação elementos e símbolos caros à literatura mutarelliana. As camadas psicológicas dotadas de estranhamento e perversão vão construindo uma tensão que eleva-se gradualmente ao passo que O Agente vai perdendo-se em suas questões íntimas, pessoais e psicológicas. O quarto de hotel, cenário desse "musical" vai então vivenciando uma degradação paulatina e claustrofóbica envolvendo aos dois naquilo que é recorrente nas obras do autor: o podre, o abjeto, os odores e sensações grotescas que transforma o espaço numa caverna sombria tal qual a mente de seu protagonista em crise;

6 - Aliás, temos tratado da intensa relação entre o sagrado e o profano, o sublime e o abjeto nas narrativas do autor. Nessa obra isso está presente e de forma bem explícita, vide A Voz da Pureza. Na alegoria-metáfora caracterizada pela personagem encontramos algo muito comum nas obras de Mutarelli, o sublime enquanto promessa inalcançável, ou mesmo inexistente. O sublime que é na verdade coberto pelo baixo, pelo inferno (tal como o pai, outro símbolo presente e recorrente em seus livros) pela podridão existencial de uma vida que como sabemos, para as personagens mutarellianas, não faz qualquer sentido;

7 - Outra recorrência importante presente nessa obra (que na verdade é inicial na jornada do autor pela literatura) é a habilidade de Mutarelli vasculhar as lixeiras mais mundanas da existência e torná-las elementos de alto teor e valor literário. Já o dissemos e reforçamos que evocando ideais dadaístas, para o autor tudo pode ser trabalhado na e pela literatura, sendo nesse livro o estranho hábito de O Agente utilizar-se das imagens das carteiras de cigarros analogamente às cartas do tarô. Assim ele procura por significações a justificar suas estranhas escolhas e à da Voz da Pureza. Para Mutarelli tudo, mas tudo mesmo pode ser fonte-primária para intertextos dos mais inesperados;

8 - Outra questão curiosa é como o livro a seu modo trata justamente os pavores desse homem da pós-modernidade, perdido sem qualquer referência. Isso atira-o de volta à caverna, é o que faz O Agente, se enclausura, procura pela fuga do que é a existência, a vida. O quarto de hotel então se transforma em sua caverna, onde a luz vai sendo bloqueada a cada nova passagem. O homem não deseja sair então da caverna, não porque as sombras que lhe chegaram do externo, lhe assustem, mas pelo fato de que ele saiu, ele percorreu pela luz fora da caverna e essa jornada foi-lhe então dolorosa, atroz. Ele já não teme mais o desconhecido que está fora daquela caverna, mas simplesmente aterroriza-se justamente por ter visto tudo que lá ora está. A luz, de certa forma, cegou-o. O Agente então revela-se aquela criatura tonteada pelo flash da existência;

9 -  Além disso, poderíamos ressaltar ainda a névoa que é tudo que se "narra" na obra. A permanente sensação de ilusão psicológica, de mera miragem. A existência posta em dúvida com certos ecos de Clube da Luta. A própria realidade posta em cheque como sempre o é nas obras do autor. Mutarelli narra pela perversão a dúvida do que é real ou do que é fruto da mente de um narrador perturbado que ao final encerra o livro com uma promessa digna dos filmes trash. O devir, para Mutarelli, é sempre tenebroso, trágico;

10  - Enfim, ler Mutarelli é sempre uma jornada ao mesmo e ao novo. Nos promove um olhar dilacerado ao íntimo mais perturbado e perturbador da existência humana, mas, especialmente do homem pós-moderno, disfuncional e erigido na falta, na carência. Carência de quê? As respostas parece-nos a busca eterna de um autor capaz de construir os mundos mais assombrosos e assombrados da literatura brasileira contemporânea.

:: + na Amazon ::



Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem