10 Considerações sobre The underground railroad ou sobre o grande horror humano

Vencedor do Pulitzer de literatura 2017, The underground railroad - os caminhos para a liberdade é obra a tratar do grande horror humano, aquele que persiste e atira-nos às faces o pior da existência humana, o ódio racial que a despeito do tempo em que se passa a narrativa, é ódio persistente e contemporâneo que revela nossa pior chaga: o racismo. Neste post nossas 10 considerações sobre a obra, confira:



1 - Em The underground railroald Colson Whitehead apresenta-nos um retrato violento e cruel de um tempo violento e cruel cujo assassinato maior é o da utopia, da utopia da convivência e compreensão dos povos, das etnias, a partir do jogo de poder estabelecido pelos brancos que não intimidam-se a descer aos porões do inferno e revelar suas próprias faces, abjetas e monstruosas, uma face da natureza humana que diz o quão deprimente e horrorosos podemos ser. A utopia assassinada percorre a jornada de Cora, escrava fugida de uma fazenda de algodão pelos misteriosos túneis e rotas secretas da Underground railroad em direção aos estados livres na América;

2 - Entrementes podemos reforçar que mesmo o termo estados livres pode ser um tanto quanto subjetivo, pois que a despeito das campanhas abolicionistas e da abolição da escravatura em parte do território norte americano no século XIX isso de modo algum significava paz e tranquilidade aos negros, que a qualquer momento poderiam cair em traições, arapucas, armadilhas e todo tipo de sortilégio que os atiraria novamente à servidão em algum lugar do sul. Bem sabemos que ainda hoje as ideias supremacistas, o ódio e o racismo persiste naquelas terras, sendo um mundo perigoso e hostil aos negros que dirá então quando se passa a narrativa;

3 - E Colson Whitehead é capaz descrever cenas saídas de um inferno bem mais horroroso que as imagens de Dante. Se por um lado a jornada de Cora estabelece a seu modo a jornada de uma heroína negra cuja vitória tentar resistir sobrevivendo aos mais tenebrosos horrores da escravidão, por outro, talvez, o maior impacto seja justamente o modo como ele descreve a naturalidade e a adesão social da comunidade colonizadora e branca a um modo existencial absurdo, como as visões de Cora dos eventos sociais da comunidade vista por Cora no sótão de Martin, a tenebrosa e assustadora imagem provocada pela descrição da trilha da liberdade ou o desfecho da Fazenda Valentine;

4 - Aliás, o desfecho da Fazenda Valentine é talvez no livro a declaração mais vistosa de Whitehead do assassinato da utopia, dentre os assassinatos da utopia que realiza no decorrer da narrativa. É como se sua volta no tempo o autor afirmasse o quão longe em nosso presente ainda estamos dessa utopia, uma utopia da razão que é ignorada por muitos de nós. Além disso, o destino da fazenda estabelece aquilo que é o único destino da jornada de heroína do romance, a eterna fuga, a ausência segura de um local em que reine o entendimento e a compreensão de que a humanidade não cabe numa única parcela que assim a quer limitá-la;

5 - Além disso, há, embora não de modo extremamente explícito, a presença de certo antieuropeísmo no romance. A bem da verdade o autor procurar descrever em seu romance o espírito colonial marcado pela violência, poder e morte regados pelos europeus na América, nisso, a lembrança na obra aos povos originários que caíram diante a fome de poder e sangue dos colonizadores, aqueles que invadem o espaço alheio para tomar como seus sob a alcunha de desbravadores ou pioneiros, mas pioneiros de quê?

6 - E para abordar tudo isso o romance tem como foco narrativo principal, ainda que por vezes haja alternância desse foco narrativo, a figura de Cora, uma jovem escrava filha de Mabel, cuja fuga da Fazenda Randall tornou-se lendária.  É Cora que acompanhamos na maior parte do tempo, sua infância à decisão de partir após ser convencida por Caesar, que experimentara a "liberdade" e tinha um plano e contato para uma nova fuga, uma jornada por caminhos tortuosos em busca da liberdade;

7 - Neste ponto devemos realizar uma reflexão dialógica. Se por um lado comentamos os assassinatos da utopia presentes na narrativa, por outro lado há de se mensurar aquilo que dá vazão e mote ao romance, a Underground Railroald. Se uma coisa Colson nos deixa ciente em toda a narrativa é quanto aos riscos e as consequências da luta pela liberdade, especialmente para os negros mas todos que adentrassem à causa. Por isso mesmo, se talvez não seja uma utopia plena, a existência de rotas secretas, pessoas e conspiradores nessa luta justa e necessária, certamente é uma gota de esperança em meio à miséria humana;

8 - Assim, dar visibilidade a essas histórias de quem arriscou - ou mesmo pagou com - a própria vida a uma causa que para além da justiça, trata daquilo que melhor poderíamos ser enquanto espécie humana é fundamental para tecer nossas ideias e ideais de resistência. Mais que uma jornada de aventura que empobreceria qualquer romance com objetivos tal qual esse, uma jornada a repeito de valores éticos e humanos no sentido civilizatório, já que, como nos mostra o livro ou tantas outras realidades sociais, há entre humanos valores defenestráveis aos quais a sociedade (parte dela) sucumbe numa espécie de encantamento macabro tornando-os monstrengos insensíveis capazes de tantas e tantas atrocidades; 

9 - Dito tudo isso, ao passo que nos encaminhamos para o fecho dessa postagem, gostaríamos de reforçar o quão contraditório mas importante capítulo último acerca de Mabel. Há da parte de Colson Whitehead, parece-nos a vontade  o desejo de entregar ao leitor o desfecho existência de cada um de seus personagens, veremos isso com Caesar também, todavia o de Mabel, é mais curioso e enigmático. Se poderia parecer-nos dispensável ou questionável o autor explicar algo sobre a mãe de Cora e sua fuga, por outro, a sua vitória, a vitória incontestável que traça para sempre o destino da Fazenda Randall e do caçador de escravos Ridgeway, a declaração final dos acontecimentos chama atenção para a natureza de tal vitória, uma vitória alcançada pela desgraça e pela derrota quando perder mostra-se a única vitória sobre os martelos e pregos do horror;

10 - Enfim, marcado pela violência de tempos e retratos violentos e lastimáveis do grande horror humano que revelou-se o racismo e a escravidão perpetrada por colonizadores sedentos de sangue poder e riqueza, The underground railroad é uma narrativa que nos faz lembrar do quão baixo podemos nos portar e comportar, nos propicia um olhar ao espelho do tempo, um tempo nem tão distante assim e ainda presente como não deveria ser. Um livro pra te fazer pensar em que mundo você quer viver? Um livro que a despeito do assassinato das utopias, ao narrar tais estórias clama justamente pela utopia de um mundo em que tais chagas sejam enfim apagadas de nossa experiência social. O que por vezes temos a impressão de estar longe, muito longe, tristemente.

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