10 Considerações sobre O presidente negro, de Monteiro Lobato ou Mein Kampf verde-amarelo

O blog Listas Literárias leu O presidente negro, de Monteiro Lobato, publicado pela editora Globo (2009). Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre este controverso e polêmico livro, confira:


1 - Publicado originalmente em 1926 sob título O choque - romance do choque das raças na América no anno de 2228, O presidente negro é o único romance de Lobato no decorrer de sua carreira e, especialmente com a ascensão de Obama à presidência americana, voltou a ganhar popularidade, entretanto, como facilmente é possível ver com uma rápida pesquisa na internet ou revistas acadêmicas, não sem uma série de leituras e interpretações extremamente frágeis quanto à obra. Como ocorre em obras de Ficção Científica o primeiro engano se dá nos comentários superficiais acerca dos dotes premonitórios do autor, o que, claro, com a eleição de Obama fez com que para muitos Monteiro Lobato se tornasse uma espécie de Nostradamus. Não que o autor de fato não anteveja essa e tantas e outras (e ainda) mais surpreendentes visões do futuro, porém, essas atitudes simplistas tornaram popular uma narrativa das mais complexas e controversas que passou a ser lida de forma para lá de equivocada por uns e extremamente alentadora para outros, que no romance-manifesto eugenista de Lobato podem encontrar apoio às mais absurdas e racistas das ideias. E aqui, desde já, compartilhamos o que deveria ser obrigatória em toda publicação deste livro: seria fundamental que cada edição da obra fosse uma edição comentada de forma crítica, trazendo ensaios e apontando os problemas da narrativa. E comentários bem longe do típico passa-pano que encontramos nessa edição da Globo em que a breve introdução de Marcia Camargos e Vladimr Sacchetta diz: "Para além de uma fábula futurista, O presidente negro vem reafirmar o talento visionário de Monteiro Lobato. Ainda que permeada dos valores da década de 1920". Esse "mas" travestido de "ainda que" é um baita absurdo, pois há obras de mesmo tempo que vão em sentido oposto das ideias de Lobato (Devemos preparar um vídeo contrapondo este livro e Admirável Mundo Novo). Esses e outros elementos que nos levaram a ver na obra a versão nacional de Mein Kampf serão discutidos no decorrer desse post que trará não apenas as razões que nos levam a criticar a obra, mas também a que no final do texto leva-nos a defender a sua leitura;

2 - Mas antes de prosseguir pelos problemas, iniciemos por uma breve contextualização desta narrativa. O livro é narrado em primeira pessoa por Ayrton Lobo, criatura mundana pertencente à massa, quiçá por isso propício às ideias de massificação. Empregado de uma pequena companhia, ressentido não só com seu trabalho, mas também com sua vida um tanto medíocre é um viajante do tempo incomum, pois diferente da maquinaria de Wells ou Verne (lembradas no romance), sua viagem se dá pelos relatos compartilhados por Miss Jane, filha de um exótico e misterioso cientista que conseguiu técnicas de captar o éter do tempo por meio de uma engenhoca brasileiramente chamada de porviroscópio.  O próprio aparelho é destruído pelo professor Benson de modo que a estrutura da sociedade na América no ano de 2228 é então narrada por Jane a partir de sua memória de tudo visto no fantástico aparelho. Isso torna-a uma espécie de co-narradora já que todo o olhar desse futuro é trazido por ela. Nesse futuro, para o espanto da mente limitada de Ayrton Lobo, há a possibilidade da eleição do primeiro negro como presidente norte-americano, Jim Roy. Ao construir seu olhar para o futuro, Monteiro Lobato alicerça a cada capítulo seu entusiasmado manifesto pela eugenia, uma ideia um tanto presente naquela década, cujo um dos adeptos mais famosos atendia pelo nome de Adolf Hitler; mas porquanto deixemos isso de lado;

3 - A teimosia ou incapacidade de perceber o óbvio produz densas nuvens de engano. Parece-nos que é isso que ocorre em algumas leituras e interpretações desse livro. Você vai encontrar muitas leituras que relacionam o livro de Monteiro Lobato à distopia, gênero de alerta e tão em voga nas décadas de 1920 e 1930. Mas realizar tal relação é um erro absurdo de compreensão e entendimento do gênero a nosso ver. Com bastante acerto, nos primórdios os pensadores chamavam as distopias de utopia negativa, ou seja, de maneira sucinta compreendiam neste gênero obras que tratavam sociedades futuras e de aparente caráter utópico de maneira negativa ou desconfiada das maravilhas desse futuro. Temos como exemplo de obras permeadas com valores dessas décadas romances como Nós (1925) e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, esta última, especialmente, provavelmente principal título fundador do gênero distópico em que a aparente utopia revela-se um pesadelo. Isso tudo totalmente o oposto encontrado na narrativa de Monteiro Lobato;

4 - A bem da verdade e sem qualquer exagero ou engano, O presidente negro é pois sim uma utopia. Sim uma utopia aos olhos do autor, não só dele, claro, já que a eugenia grassava e ainda grassa de prestígio em muitos setores da sociedade brasileira, entre eles a própria política visto que um dos entusiastas da eugenia era o próprio Getúlio Vargas. Considerar esse livro uma distopia não só incorre em erro de interpretação, mas num perigo. Bem sabemos que as utopias são escritas com a intenção de compartilhar ou vender a ideia de modelos e estruturas sociais ideais (no caso idealizadas de seus autores) que tornem a sociedade especie de perfeição evolutiva. Ora bolas, é uma utopia o que temos em O presidente negro, uma pérfida utopia tal como Mein Kampf fora a pérfida utopia de Hitler só interrompida a um alto custo para toda a humanidade. Mas por que uma utopia? Simples, porque a ideia aqui é vendida de forma positiva, o genocídio negro que resta por fim do choque das raças não só valoriza a "supremacia branca" como em todo o livro Lobato justifica e argumenta a necessidade do choque, ainda que, e atente que isso é importante, não desconheça dos martírios e desgraças sofridas pelos negros na América e ainda a própria contribuição destes para a formação dessa nação. Mesmo reconhecendo isso, para o autor o olhar naturaliza uma guerra que aos seus olhos é inevitável, tudo isso pela torta compreensão da evolução das espécies e pelo olhar tenebroso da incapacidade de conceber a espécie humana una, ainda que com suas diferenças. Para a obra e para ou autor é natural que um precise vencer e o outro ser extinto;

5 - Retomando a distinção entre utopia e distopia que é essencial para a melhor compreensão da leitura, diferentemente de narrativas como a de Huxley ou do posterior George Orwell em que os autores no interior da narrativa, não apenas apresentam-nas como pesadelos, mas constroem pontos de inflexão ao modelo ideal imposto, Monteiro Lobato constrói o livro no ritmo dos sonhos das utopias. Em nenhum momento questiona-se a validade do modelo utópico apresentado, pelo contrário. "Bastou um século de inteligente e sistemática aplicação dessas leis áureas para que o povo americano se alçasse a um grau de evolução física, mental e moral que nem o próprio Owen chegara. Fecharam-se as prisões e com ela os hospitais, os hospícios e asilos de toda espécie. E os sociólogos da época entraram a assombrar-se da estupidez de seus ancestrais..." diz o entusiasmado narrador para em seguida falar "Nós... que passavam a vida lutando contra os produtos do mal sem terem a ideia de suprimi-lo com a supressão da má semente" e continua "mas realmente parece incrível, Miss Jane que ainda hoje tenha o direito de ser pai quem quer! Morféticos há ali na roça que botam no mundo anualmente pequeninos lázaros..." reclama Ayrton no capítulo burrada! em que se desfilam os indesejáveis a serem suprimidos pela sociedade. Quando Miss Jane traz-lhe um bocado mais do futuro "E não parava por aí a intervenção seletiva. Se um "pai autorizado" pretendia casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenométrico, onde lhes avaliavam o índice eugênico e lhes estudavam os problemas à harmonização somática e psíquica..." o encantando Ayrton só pode responder-lhe com um "Como é claro e inteligente isso". Para um consciente e humanista leitor deste século XXI cumpre dizer que exige-se estômago a leitura;


6 - Não à toa já chamamos no decorrer desse texto a obra como romance-manifesto eugenista. As "virtudes" e "eficiência" do método são evocadas e parabenizadas em todo decorrer do romance que como esperado de mentes destas ideias termina num beijo clichê de Barrymore selando o amor entre o mocinho e a mocinha da narrativa. Há, inclusive, um capítulo inteiro relacionando o eugenismo à eficiência. Tudo isso partindo do mais nefasto dos conceitos com os quais o livro se coaduna, o ideário de uma raça ariana pura, no casa uma raça branca que expurga do mundo todas as outras etnias e não só elas, mas toda e qualquer alma divergente e que não se enquadre nos seus conceitos sociais; além disso, como ocorre nesse ideal totalitária, é preciso estar enquadrado em seus ideias estéticos e morais, obra aqui marcadamente influenciada por certas noções do belo, esse belo idealizado e branco. Na verdade, é um bocado difícil no decorrer da leitura não sentir na voz de Lobo palavras saídas da boca de Hitler... as semelhanças de ideias são gigantescas...

7 - Entretanto, se o eugenismo de Monteiro Lobato aproxima-se e muito do programa nazista, ele se afasta dos alemães ao olhar para aquela nação que ao cabo poderia enfim aplicar com sucesso seu "programa branco", os Estados Unidos. Aqui a substituição da Europa pelo novo continente chega pela argumentação de Miss Jane ao argumentar desfazendo uma possível tosquice dessa gente "idealista como nenhum outro povo..." diz ela, seguindo "e do único idealismo verdadeiramente construtor da atualidade. Acompanhe a vida de Henry Ford, por exemplo, estude-lhe as ideias, Verá que nelas estão todas as soluções que no seu desvario de doida a Europa procura no despotismo". Assim como na obra de Huxley a influência de Ford é gigantesca. Entretanto se no Admirável Mundo Novo tal importância é colocada a ponto de haver um mundo AF (antes de Ford) e DF (depois de Ford), igualando o industriário do Ford Bigode a um Cristo, isso se dá no reconhecimento do alcance de tais ideias a ponto de a própria humanidade passar a ser produzida aos moldes de suas fábrica, não necessariamente uma adesão a tais ideias. Diferentemente do que ocorre em Lobato "E o mundo americano não podia deixar de ser assim, senhor Ayrton. Note apenas: que é a América senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças europeias? Onde há força vital da raça branca senão lá?" pergunta ela. "Realmente, realmente concorda" o narrador, lembremos, sempre ao vento dos sonhos e da utopia;

 

 8 - Para piorar, há algo de cruel na "solução branca" para os choques das raças apresentado por Lobato. Há de se considerar, claro, que a despeito de seu racismo, o negro seja uma existência na obra do autor - diferentemente do que ocorre em outros autores brasileiros racistas que excluem o negro da obra, negam-lhe mesmo a existência -, que, ainda, o autor aborde os horrores perpetrados pela escravidão, para então naturalizá-los sob a "necessidade" de luta e supremacia, o autor trata do cabelo. Isso aliás é reflexo do quão complexo pode nos ser debater tal obra. Ao apresentar a "solução branca" e o genocídio das etnias afro na América de 2228 relacionadas ao "cabelo carapinha" Lobato dá um golpe nos povos negros, por outro reafirma a luta daqueles que sabem, "não é sobre o cabelo apenas". Mas retomando o racismo reverberado no livro, entre tantas e tantas afirmações a que talvez mais demonstre a hipocrisia branca seja a de como a narração apresenta a liderança negra de Jim Roy, um encantador de autômatos acéfalos que apenas seguem as diretrizes do líder, como se os brancos o fizessem diferente. Aliás, ficamos até agora nas abordagens raciais e relativas ao gênero da obra e nem adentramos o modo pejorativo dado ao feminismo...

9 - Mas o que pretendemos dizer com isso? Que a obra não deve ser lida? Nunca diríamos tal coisa, nunca. Pelo contrário, a leitura de um livro desses é fundamental para que não sejamos simplistas em nossas análises e estudos não só da literatura, mas como de aspectos sociais mais amplos. A leitura de O presidente negro, por exemplo, é capaz de retirar qualquer pioneirismo das ideias supremacistas recentemente defendidas pelo bolsonarismo. Muita gente vende o tom racista e preconceituoso de uma política que exclui a diversidade de nossa nacionalidade como algo novo em nossa jornada, nada mais errado. São catalisadores de ideias latentes e não mortas em estratos sociais brasileiros e não é de hoje. Ler o livro de Lobato é quase ver a antecipação do programa eugenista e de tendências genocidas de Bolsonaro e sua trupe. Ler o livro, portanto, deve, diferentemente do que pensou seu autor em sua produção, nos servir de alerta do quanto o caminhar civilizatório é amplo. Ideias equivocadas como o eugenismo ou a utopia supremacista branco possuem seus argumentadores na cultura e devemos contra-argumentá-las. Além disso, conseguindo o leitor tal abordagem crítica, no campo mais exótico da Ficção Científica teríamos uma bela coleção de elementos que são muito bem antecipados por Lobato (faremos uma lista), que perdem-se justamente na ideia basilar de sua pedra filosofal, pois no fundo não deixa de ser o livro um manifesto supremacista branco;

10 - Enfim, O presidente negro é das leituras mais difíceis e que exige de seu leito uma boa formação e boa capacidade crítica. Uma leitura que por vezes é quase intragável. Destacamos o olhar de Lobato para a América. Se pegarmos nosso presente, podemos ficar com a sensação de que o olhar do autor para aquele lugar e com o ânimo, paixão e entusiasmo de suas ideias eugenistas seja o maior acerto em sua capacidade de "antever" movimentos sociais. Talvez seu porviroscópio não tenha antevisto as lutas pelos direitos civis, a antecipação da eleição de um presidente negro, mas é inegável que em seu olhar utópico, Monteiro Lobato percebe com muito acerto que a América tornar-se-ia o éden para as ideias eugenistas e campo prolífico para os idealistas da supremacia branca, coisa que estes últimos anos parecem reafirmar.

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