O Blog Listas Literárias leu Memórias de um burro, de Condessa de Ségur publicado pela editora Autêntica; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Clássico da literatura juvenil russa, publicado pela primeira vez em 1860, Memórias de um burro [esta edição com as ilustrações de H. Castelli] é destas leituras imprescindíveis, independentemente da idade de seus leitores. Aliás, a despeito de ser literatura juvenil, não significa de modo algum dizer que há perdas na complexidade da narrativa, pois é obra de muitas e profundas camadas trazendo com isso a aura necessária às narrativas literariamente e socialmente relevantes;
2 - A bem da verdade, talvez nos valha aqui um parenteses importante. Nossa realidade presente às vezes pode levar-nos ao engano de pensarmos a literatura juvenil como um gênero amaciado em seus dramas e em suas temáticas, em parte porque muito das publicações contemporâneas podem mesmo cair no erro de pensar a juventude como infantilidade e incapacidade de leituras mais complexas, tensas, dramáticas. Talvez isso nos diga algo ou sobre os jovens ou sobre os adultos que editam e produzem livros juvenis. Pra sermos sinceros, basta acompanharmos pronunciamentos políticos para encontrarmos um bando de adultos tirando a juventude para incapaz de assuntos e leituras digamos, mais pesadas. É nessa problemática que livros como este Memórias de um burro ou, por exemplo, o húngaro Meninos da Rua Paulo, mostram que há certa subestimação da capacidade de jovens leitores, pois que são exemplos de narrativas juvenis que tratam de questões delicadas ao longo da formação na transição para o mundo adulto. São obras que não eufemizam os problemas ou a estética, e isto não é muito comum em parte das narrativas juvenis presentes. Por isso esses velhos clássicos nos são ainda tão importantes;
3 - Feito esse parenteses, com seus exageros e enganos, quiçá algum acerto, podemos então dedicarmo-nos a esta curiosa, divertida, mas também reflexiva narrativa, a começar pela peculiaridade de seu narrador, o esperto burro Cadichon que narra suas venturas e desventuras e com isso nos apresenta interessante crônica social de sua época, mas não apenas isso, pois que estaria datado. Também nos mostra comportamentos da universalidade humana, em seus defeitos e virtudes;
4 - A questão do narrador não se mostra interessante ou peculiar apenas pelo fato de ser um burro a contar suas histórias, mas porque também chama atenção do leitor às técnicas da narração, já que Cadichon usa da escrita para de certa forma comunicar-se com seu narratário, o patrãozinho. É a ele que o burro conta, mas não apenas isso, torna a literatura uma espécie de testemunho e certificação quanto a sua sabedoria, pois ao longo das estórias que vicejam pelo livro uma das grandes indagações quanto a esperteza e sabedoria de Cadichon está ligada ao fato de ele "não poder" escrever um livro, o que ele então acaba por fazer. Além disso, há de se destacar, que embora não abundantes, haverá diferentes marcações ao longo da escrita em níveis de metaliteratura;
5 - No sentido do fazer literário e suas teorias, podemos ainda tratar da habilidade com que Condessa de Ségur passeia neste trabalho em diferentes gêneros literários. Mesmo num conjunto que o todo nos permita dizer romance juvenil, as marcas e o espírito dos contos, os de aventura, especialmente se fazem valer, só não tanto quanto a aura de fábula presente do princípio ao fim da publicação;
6 - Quanto à natureza fabular desta narrativa juvenil, se não somente habitado por animais com características humanas, tem em seu narrador um animal com características humanas, muitas deles às vezes excepcionais em termos de esperteza e raciocínio. Além disso, entre si, os animais carregam as características da sociabilidade humana, sendo mais um ponto a nos levar às fabulas. Mas certamente nenhuma dessas questões tão definitivas quanto o caráter moralizador presente nas aventuras narradas pelo burro, seja individualmente, ou no conjunto maior, a moral presente na própria transição comportamental de Cadichon, o burro orgulhoso de sua perspicácia que por causa da arrogância e de algumas maldade quase perde tudo, tendo ele também de aprender algumas lições; nesse sentido vale dizer que o livro é um exercício do aprender, quase sempre com os tons moralizantes das fábulas. Não apenas Cadichon, mas também outras personagens do livro, especialmente as infantis que terão de encontrar algumas lições de moral em cada acontecimento;
7 - Quanto a Cadichon vale dizer, se pensarmos em termos dos estudos literários, belamente fosco, opaco. É criatura complexa a despeito de sua natureza de burro, na verdade, belo disfarce de sua constituição humana pinceladas com fortes traços de um anti-herói. Nos meandros do texto, a identidade e a psicologia do burro revelam-se dúbias, que em muitos momentos faz aflorar criatura de sentimentos e comportamentos pequenos, com a crítica centrada especialmente no orgulho e na natureza vingativa de Cadichon, metáfora certamente de muitas pessoas por aí. E Cadichon sabe ser bem perverso ao longo do livro, ao mesmo tempo em que sua complexidade o torna amável em muitas outras situações. Com isso se pretende dizer que é narrador-personagem-protagonista a ser lido em muitas de suas camadas constituintes;
8 - Além disso, pode-se ainda reforçar a natureza cronista dos comportamentos sociais e humanos dos indivíduos presentes na trama, em alguns casos crônicas com fortes marcações de seu tempo, próximas dos costumes e dos comportamentos de sua época, em outros, crônicas mais amplas, universais e não amarradas a um tempo específico. Estas desnudam comportamentos de certa universalidade dando conta dos ressentimentos, das alegrias, dos orgulhos, das invejas, dos medos humanos. Para esta feita cronista, o burro, sempre à espreita atrás de uma porta, traz diferentes perspectivas, dos senhores, dos empregados, da mendicância, há assim toda uma estrutura social subjacente ao texto;
9 - Claro, tudo isto até agora falado, em grande parte está na porção submersa do iceberg, a qual chegamos após "visita"a sua ponta visível, cheia de aventura, movimento, diversão, parte esta que nos prepara para a jornada mais profunda, onde repousam os momentos de maior tragédia, tensão e também tristeza, pois sim, há passagens diriam os mais emotivos, de se cortar o coração. E tudo isso faz da obra um conjunto de maravilhosa leitura;
10 - Por isso, enfim, Memórias de um burro é leitura indispensável a conhecermos, mesmo que já tenhamos passado por nossa juventude. É leitura inteligente, crítica e tão mordaz quanto seu narrador, que por meio de certa picardia, leva-nos a ricas e interessantes reflexões.
Tags:
Resenhas