O Blog Listas Literárias leu A Pele, de Curzio Malaparte que agora ganha nova edição pela editora Autêntica; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Antes de mais nada, vale dizer que a leitura de A Pele pede - e demanda - leituras não panfletárias, pois que no centro de tantas polêmicas que podem suscitar obra e autor, é todavia sobre a arte de que se trata tudo isso, e por isso, aqui importa-nos as muitas vezes conflitantes e contraditórias nuances de uma narrativa primorosa, mas que exige do leitor não só desprendimento - e total liberdade de fanatismos - mas muitas vezes estômago para aguentar a imagem da guerra em todos os seus horrores. Nesse sentido, vale dizer que já temos a resposta para a provocação do Coronel Jack Hamilton no interior do romance "não há qualquer importância se o que Malaparte conta é verdadeiro ou falso. A questão a ser posta é bem outra: se o que ele faz é arte ou não". É sobre essa obra de arte da literatura que trataremos nesta publicação;
2 - Antes de tudo, é preciso dizer que a obra de Malaparte enquanto perspectiva dos gêneros literários encontra-se numa posição bastante peculiar, quanto original. Ela joga com as fronteiras da autoficção e do romance para produzir algo único. Isso fica demonstrado mesmo internamente no romance, reunindo aí a ironia e o seu cinismo de observar o mundo; quando provocado da veracidade de suas estórias por um grupo de militares em acampamento, aproveita o momento para debochar dos mesmos fazendo-os crer ter ele comido uma mão humana sob o testemunho e espanto de todos. Esta é a resposta à "provocação" de Hamilton e norte importante para análises do pungente romance. Mas retomando as fronteiras dos gêneros e a estrutura de sua estética, há diferentes elementos a construir tais debates, a começar pelo fato de que aqui autor e narrador são as mesmas pessoas, Curzio Malaparte, este, entretanto, pseudônimo de Kurt Erick Sückert. Tudo isso evoca em muitas interpretações os retratos de guerra, a autobiografia, contudo, estas rompidas às vezes, no caso de A Pele, até mesmo com o exagero do insólito ou o flerte com o fantástico como quando do diálogo de Malaparte com os fetos;
3 - A narrativa de A Pele desenvolve-se a partir de 1943 e acompanha os momentos finais da guerra, da Segunda Guerra, ambientado especialmente em Nápoles, que em determinado momento testemunhará a atividade do Vesúvio, e ainda uma marcha até Roma. São estes estertores com a chegada dos "vencedores" e a "libertação" da Europa do nazismo e do fascismos que serão retratados pela estética da arte, e com todo poder de ressignificação e releitura que a arte nos proporciona. É o que faz Malaparte, e como aprendemos com Jack Hamilton, a veracidade dos muitas vezes insólitos acontecimentos descritos pelo autor, é o impacto que estas cenas, mesmo quando pinceladas pelo insólito, nos surgem tão realistas e sufocantes que não há como não sentirmos a leitura. A narrativa de Malaparte tem efeito sobre aquele que lê, e não sendo este leitor um sociopata qualquer, não há como não impactar-se com o desencanto e a melancolia extravasada pelo cinismo e sarcasmo do autor ao quebrar qualquer encantamento bélico. No fundo é uma das poucas narrativas a quebrar qualquer percepção positiva da guerra;
4 - A bem da verdade duas coisas geralmente tratadas pelo viés positivo, a guerra, mas também a glória e a vitória, são destituídas pela força do argumento de Malaparte. Claro que nesse processo de desconstrução da guerra e da glória, o autor não o faz sem a força de certo radicalismo ao apresentar-se provocativo e provocador. Malaparte em seus diálogos é uma fonte de escárnio e deboche, algo que não raro produz ressentimentos brandos em seus interlocutores, mas este escárnio, entretanto, é o que gradualmente vai eviscerando a guerra em toda a sua podridão. Ademais, as discussões presentes na narrativa evocam ainda a capacidade de a literatura expor-se apesar de todas as contradições. Kurt Erich migrou do fascismo ao comunismo, e não raro deve ter testemunhado todos os dramas que nos infringem os "ismos" deste mundo. Todavia, independentemente de qualquer militância ou carteira fascista que ele acabara perdendo por sua literatura e sua visão crítica, Malaparte grita é por meio de sua obra, e que no caso desse romance corajoso por desdenhar o que muitos enxergam como virtude, produz uma obra livre e libertária cuja voz ecoa contra as insanidades humanas. Ao fim nada mais simbólico do que a frase final do romance: "É uma vergonha vencer a guerra";
5 - Além disso, é preciso dizer que em sua visão de mundo, talvez radical para alguns, Malaparte não só envereda-se para negar a guerra como instrumento, mas vai por em discussão o próprio conceito de humanidade. O que significa ser humano em meio, especialmente enquanto no desolado cenário daquela guerra? Pois assim como a guerra e seus horrores, os homens também são vistos pelos filtros do desencanto e da agonia com que Malaparte observa a loucura como podemos ver quando diz "um homem é algo ainda mais triste e mais horrendo do que este monte de carne desfeita. Um homem é orgulho, crueldade, traição, vileza, violência. A Carne desfeita é tristeza, pudor, medo, remorso, esperança. Um homem, um homem vivo, é pouca coisa em confronto com um monte de carne podre";
6 - Creio que o texto anterior é um dos mais contundentes ao retratar a distopia humana e a distopia do humano que é escancarada por Malaparte. Desse desencanto e dessa constatação é que talvez nasça - surja - o cinismo debochado com o qual o narrador trata a todos. Todavia, apenas criticar mera e simplesmente tal escárnio e deboche que dedica a todos é não considerar a experiência do indivíduo, do homem que descobriu que ao homem livre de pensamento cabe-lhe sempre a prisão e que os inimigos mudam, aliam-se, mudam de novo, e estão sempre a abastecer um mecanismo de incoerências insanas de uma ferramenta que não deveria fazer sentido. E este é um retrato forte em toda a narrativa, de um realismo descritivo que mesmo os mais improváveis testemunhos não nos causam dúvidas ou desconfianças. Nisso a maior resistência da narrativa talvez seja o fato de retirar da guerra toda a poesia que uns tentam colocar;
7 - Mas nesse campo de virtudes que é o romance a mais significativa talvez seja o fato de não sucumbir a simplificações ou abordagens dicotômicas, o bem e o mal, o certo e o errado. É uma narrativa das nuances, e isso faz-se presente no próprio narrador, como por exemplo, a sua antipatia para com os americanos, a quem não raro o escárnio e o deboche é superlativo. Em determinados momentos o curioso da narração é a redundância do escárnio quando o narrador não só debocha dos americanos e também os representam incapazes de compreender o deboche. Todavia, embora esse asco por aqueles indivíduos estranhos à Europa, não impede a ele nutrir genuína amizade por Jack Hamilton e sofrer pelas tragédias dele, como se o destino de Hamilton fosse uma pá de terra a mais sobre o cadáver exposto;
8 - Claro que em grande parte a ironia às vezes violenta de Malaparte para com os americanos esta enraizada em sua identidade. Se por um lado a Europa lhe seja uma ferida pustulenta de tragédias, a Europa é também sua identidade, sua essência. Há de se estudar nesse romance a questão da identidade europeia de Malaparte, depois a napolitana. Distintas cada uma, mas complementares. A identidade europeia do narrador perpassará por todos os capítulos da narrativa, e embora desencantado e melancólico com o destino da Europa, a produzir o contraste desta com o Novo Mundo, com a América, está ali a paixão pela identidade europeia. Uma paixão esfacelada é bem verdade, ácida, aparentemente desencantada, mas presente no livro embora possa não parecer, sempre de forma afirmativa;
9 - E a questão da identidade europeia refletes na estética do romance. A voz de Malaparte não é solitária, vazia, não raro ele mesmo retrata o mundo pelas vozes da arte, escritores, pintores, dramaturgos... Isso implicitamente vai construindo uma imagem de Europa gorda, recheada de história, da própria arte textualmente citada, enquanto a América, pobre, vazia, belicista pelo simples belicismo, destituída de valores nobres, incapaz de compreender até mesmo a ironia e o deboche... Nesse aspecto é o narrador ainda um europeu saudoso das honras da cavalaria, um europeu consciente das questões da Europa, mesmo suas tragédias, e nisso um reticente contra tudo que ataca a Europa. De certo modo Malaparte toma o papel daquele que diz "da minha nação - da minha identidade - mal falo eu, os outros que nem tentem";
10 - Enfim, A Pele é esta obra de tantas possibilidades. Mas é acima de tudo um retrato que explora todos os horrores humanos produzidos pelos próprios humanos. É uma narrativa, como dito, para os que nela adentram, sem compromissos ou predefinições. É um romance que certamente impactará seu leitor, forte, cru, e atirando contra tudo e todos, a despeito de aparentes radicalismos de seu narrador, é um romance magistral que não nos deixará imune ao fracasso humano representado pela guerra. Depois de sua leitura, aliás, qualquer visão positiva que se queira construir da guerra não passa de ferrugem, de pó a esvair-se com o menor dos sopros. É um livro cuja crueza pode até assustar-te, tirar-te dos eixos, mas é sobre tudo um romance da linguagem, da linguagem que se expressa pela aparente comicidade da ironia, do cinismo, do deboche e do sarcasmo, mas que no fundo trata da alma fraturada por aquilo de pior que os homens puderem construir enquanto sociedade: a guerra.
Afora ser um livro cativante por suas mais diversas "histórias". Boa crítica porém faltou abordar que, apesar de todo o explanado, o livro também é, de certo modo, extremamente agradável.
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