10 Considerações sobre A Casa dos Deuses: Portais da Liberdade, de José Leonídio, ou ouça os batá kotôs...

O Blog Listas Literárias leu A Casa dos Deuses: Portais da Liberdade, de José Leonídio e publicado pela editora Autografia; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - A Casa dos Deuses é ambiciosa pentalogia que pretende-se talvez como grande épico nacional, percorrendo nossas diferentes culturas e através de nossa formação social e e histórica, tendo aqui o mérito de incluir todas as águas de nossa fonte. Nessa primeira obra, revisitamos o final do Século XVIII, época do Vice-Rei Dom Luiz de Vasconcellos e de um Rio de Janeiro, ainda São Sebastianópolis, onde uma confluência de povos e culturas dividia o mesmo espaço em diferentes gradações harmônicas, e sob as sombras dos ideais de mudanças que cobrem o velho mundo europeu e que chegam às colônias. Ademais, Leonídio de certa forma transforma em literatura as paisagens de Debret, e ainda cria com vozes africanas uma versão particular de Tristão e Isolda. Com isso pretendo dizer que esta é uma narrativa que nos dá muito a falar;

2 - Mas não sem antes reportar o principal e grave problema da narrativa e que não cabe de todo ao autor. O comentário é relevante especialmente em virtude e das ambições dessa obra, que reúne valores literários muito interessantes. Tudo isso posto em risco pela ausência de uma etapa essencial ao processo de edição, ao menos assim presumo: a revisão. O avançar de suas páginas, e elas são muitas por causa do garbo de suas intenções, acaba revelando sérios e sistemáticos problemas de revisão, tanto de natureza sintática quanto de questões ortográficas. Em determinados momentos e pela abundância próxima que às vezes os problemas surjam, torna a leitura truncada e carrancuda, uma lástima por causa de tudo que a obra é e representa. Aliás, as qualidades literárias da narrativa é que nos atiram às suas páginas. Mas sem dúvida alguma, os problemas de revisão e da seriedade que se apresentam acaba sendo um risco a um projeto tão interessante, que não tenho dúvida, dentro de uma publicação mais esmerada, teria condições e deveria ser lançado pelas casas editoriais mais importantes do país, pois sua potencialidade literária assim o merece. Dito isso, creio que podemos discutir o literário da obra, portanto;

3 - Quando falo de épico brasileiro é porque assim se parece toda a estrutura e estética narrativa da obra. A seu modo temos nossa versão nacional de A Guerra dos Tronos, mas aqui erigida numa ficção que mescla personalidades históricas e personagens do romance, que habitam aqui o tempo da colônia, governada por um Vice-Rei próximo das artes e num ambiente um tanto liberal que se comparado a outras regiões do país à época. Na visão de Leonídio uma capital miscigenada com seus mazombos, mas também com seus conservadores e libertinos, cada qual esperando por sua chance de dar as cartas. Nessa cidade que efervesce, colonizadores, escravos vindos de África e o que resta de indígenas dividem espaços, mas não sem a carga opressora do avanço colonizador. Os índios cada vez mais adentro das matas, empurrados pelos reinóis, os negros, a maior população da cidade em suas atividades como escravos ou já sonhando com a liberdade, fugidos para as matas e seus quilombos, onde dá-se o encontro entre esse novo povo trazido para cá à força e nossos habitantes originais, os índios. Nesse ambiente que a cidade e suas senhorias brancas dormem ao som dos diferentes batuques dos diferentes povos oprimidos pela força colonizadora é que o autor ambienta seu épico de grandes proporções e de grandiosas intenções, presumo;

4 - Para protagonizar este épico, Nlá Eyie Odé, príncipe escravo trazido do outro lado do mar, onde deixara sua prometida e amada Omijè Òssùpà. Com ele, viaja para o Brasil toda a sua herança e os seus valores culturais, bem como seus protetores. O romance dos dois carrega algo de Tristão e Isolda, inatingível mesmo pela distância que os separa, e próximos pelo encanto de suas crenças e pela fantasia a qual o épico se banha. Será a trajetória deste Odé nesta nova terra de senhores escravagistas que o romance centralizará todas as atenções, mas não sem deixar de constituir-se como as crônicas de uma cidade, de um tempo e seus costumes, fazendo pulsar a metrópole em todas as suas existências e personagens. Esse, decerto um dos principais valores da narrativa, cujo narrador dança serpenteando pelas diferentes perspectivas e trazendo à imagem diferentes núcleos do romance, escravos, índios, senhores e políticos da coroa, esta, vista pela obra como tolerante e amiga das artes e da literatura, comportamento que por si só possui seu preço;

5 - Para nos contar esta história, José Leonído opta ainda por uma característica muito presente nos mais diferentes momentos e movimentos de nossa literatura: o elemento fantástico. Aliás há algo de Macunaíma nesta obra, mas aqui, talvez de forma mais ampla, inclusive, especialmente pela riqueza da introdução da cultura afro com protagonista no processo. Enfim, o autor assumidamente adentra o fantástico como possibilidade de melhor contar nossa formação social, e nele retira todo o poder da fantasia e da transcendência cultural que permanece e sobrevive através da crença em suas diferentes possibilidades. Entretanto, a fantasia aqui parece-me introjetada no todo, não sendo o elemento central a chamar a atenção. Simplesmente existe com a naturalidade das crenças e da fé de cada povo, não sem claro, brindar-nos com experiências místicas e mágicas, especialmente ao tratar da relação homem-natureza especialmente a partir da perspectiva africana (Odé aqui chega com pássaros que o acompanham na viagem e o protegem) e nativa de nossos índios. Esse caldeirão de acontecimentos e de poderes é tratado com bom cuidado pelo autor;

6 - Aliás, a cidade narrada por Leonídio encontrará algum reforço entre historiadores, pois de certa forma avança para além das dicotomias, especialmente as contraditórias complexas relações entre senhores e escravos que não ficava apenas entra aquelas norteadas pela base do chicote e tronco. Leonídio narra uma cidade mais plural nestas relações e por que não, abre-se a diferentes debates e posições acerca daquele período histórico;

7 - Nesse aspecto não se pode negar que a cidade não o seja também uma personagem do romance, pois talvez o seja. Em grande parte é sobre o Rio e sua formação de que também trata o livro, e tal sensação amplia-se com o bailar do narrador pelos diferentes núcleos que acompanha e que interliga tecendo seus fios e nós. A cidade é na verdade um grande organismo, habitada por constituintes plurais, por vezes antagônicas que através de seus movimentos vão construindo aquilo que a própria cidade o será, ou o é. Deste modo, o retrato que nos desnuda o autor, carrega a seu modo certa aura, certo encanto que apenas fortalece os elementos mágicos de sua narrativa;

8 - Além disso, o romance nessa construção híbrida reunindo personagens totalmente da ficção e outras personalidades históricas produz interessante reconstrução de um tempo e de suas agitações políticas. Sob o fundo da grande narrativa, encontramos um país fragmentado expresso nos diferentes comportamentos de suas vilas (e cidades), testemunhamos a luta travada entre as ideias progressistas e os freios conservadores da sociedade, aqui representados por religiosos, especialmente. Há ainda o processo da contaminação global dos ideais revolucionários na França que aqui desencadearão uma Inconfidência Mineira e inspirarão, por exemplo, As Cartas Chilenas. Há neste épico toda uma extensa bagagem da nossa formação cultural e histórica, pois suas personagens passearão por um caminho de mudanças que ocorrem, muitas com o respaldo histórico, como a visita de Bocage ao país, ou mesmo a questão das cartas, que ao Vice-Rei provocavam forte dilema (e aqui uma mensagem interessante acerca do poder contestador e influenciador da literatura no processo político);

9 - Mas certamente, entre os principais valores desta narrativa está a riqueza e o protagonismo da cultura afro. Em especial, porque se em Macunaíma temos apenas o negro satirizado, e parte da cultura presente ainda banhada em Europa, aqui os tambores e os batuques surgem como constituintes também de uma nação, da nossa nação, abastecida neste caso com culturas distintas e ancestrais que nesta nova terra precisam resistir a uma série de opressões e tiranias. Uma cultura que na perspectiva do autor encontra par perfeito em nossa cultura nativa, o encontro de negros e índios, o que faz do livro também uma ode à terra e a natureza a quem os homens e mulheres são unos. Há nisso certo naturismo, que por outro lado atira-nos a questões antigas de nossa literatura e nossa cultura, ou seja, a paisagem, as matas, as aves, os animais. Nesse aspecto a literatura de Leonídio volta no tempo, mas talvez seja preciso, especialmente quando se pretende corrigir esquecimentos condenáveis;

10 - Enfim, superando os problemas aqui apresentados (e que podem atrapalhar a leitura), o romance é um épico de fôlego, rico e intenso que merece sem dúvida alguma olhares aprofundados. Um obra ambiciosa e que talvez com uma nova edição aperfeiçoada, tem potencialidade a ser referência entre nós, pois é risco em substância e conteúdo.



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