10 Considerações sobre Espera Agora Pelo Ano Passado, de Philip K. Dick ou sobre leituras fuderosas

O Blog Listas Literárias leu Espere Agora Pelo Ano Passado, de Philip K. Dick publicado pela editora Suma; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Espere Agora Pelo Ano Passado está provavelmente entre as mais fortes narrativas políticas de Dick, mas sem perder a característica de seu trabalho que é de gritar contra o frágil tecido da realidade que nos cerca, e, no caso deste romance, de uma forma intensamente alucinógena, que embora com olhos no futuro, tece crítica social a problemas que parecem-nos assombrar desde a segunda década do Século XX. A leitura de Dick sempre nos envolve e nos espanta de forma assombrosa;

2 -  A obra de Dick é marcada pelas características distópicas, embora nem todas carreguem as características das distopias nascidas no Século XX, pois já estão mergulhadas nas metamorfoses do gênero, que a partir dos anos 60 já reúne novas temáticas e estruturas. No entanto, esta narrativa seja a mais próxima e mais influenciada por duas das principais narrativas distópicas, 1984 e Admirável Mundo Novo. Da primeira, veremos muitas aproximações como a trinca flutuante de nações em guerra, que aqui é tratada através dos povos interplanetários, a lideranças de um tirano que age de diferentes formas para perpetuar o poder, e, claro, nesse estado de guerra total e eterna a vigilância e a repressão. Mas Dick une essa universo bolsas hedonistas como na obra de Huxley, e acima de tudo a fuga artificial e ao mesmo tempo modeladora de realidades através de uma droga potente e poderosa, que no romance causa todo embate entre realidade e artificialidade, e você não saberá onde uma começa e outra termina;

3 - Há claro, uma bela razão para encontrarmos na narrativa fortes influências da distopia clássica, pois este é um romance eminentemente político em que com tons sombrios e fatalistas, Dick debaterá nuances do fascismo. Vejamos que esse tem sido um tema que volta e meia retorna à pauta, e as preocupações e referências do autor são explícitas na própria obra que volta e meia retorna às guerras, à Segunda, e mesmo à Guerra Fria para analisar o seu presente, no caso do romance o nosso agora não tão distante 2055. Aliás, um dos principais personagens do romance está fortemente ancorado na figura de Mussolini, já que Gino Molinari não só é um líder de política questionável, mas reencena a incapacidade popular e mesmo atraente do líder fascista. Ademais, se ainda nos restassem dúvidas da semelhança, o fato de Molinari ser conhecido como Dique, deixa tudo claro;

4 - Vale dizer, todavia, que a crítica política e social feita por Dick não se dá de forma panfletária, pois caberá ao leitor encontrá-las nas entranhas da estrutura do romance, que é construído por diferentes camadas, todas dotadas de toda a subjetividade que as narrativas com força possuem. Tanto que você não encontrará "placas' anunciando do que se trata, mas sim elementos orgânicos na trama que te fazem olhar em diferentes perspectivas, e a política é uma destas portas interpretativas de leitura do livro;

5 - Para isso, as discussões sobre o poder não serão descritas, mas desveladas pelo andamento da narrativa que colocará o protagonista, Dr. Sweetcent nos bastidores do poder, não só como expectador, que também o é, em com pouca compreensão do jogo a sua frente, mas também como jogador. Digo com isto, que ao inserir o médico no staff do então Secretário-Geral da ONU, e na verdade governante máximo da Terra, Gino Molinari, Dick vai sem aparentemente posicionar-se baixando as cortinas do jogo político, de modo que revela estratagemas do poder, especialmente a forma peculiar com a qual Molinari faz sua política e com isso estabelece sua ditadura que não se vende como ditadura. Entretanto, o romance, entrega pelo diálogo de dois policiais subalternos qual é a verdadeira faceta não só de Molinari, mas da sociedade que este governa;

6 - E tudo isso montado nos tradicionais cenários imaginativos da brilhante mente de Philip Dick. metrópoles opressoras, vidas interplanetárias, e um pool de novas e diferentes tecnologias ao tempo de sua escrita, e personagens dotadas de grande diversidade, haja vista os "insetos" reegs, de modo que o romance reúne numa única obra elementos que permeiam toda a ficção científica de seu período;

7 - Entretanto, sequer chegamos ainda ao que mais marca as narrativas do autor, a fragilidade da realidade. Essa é uma constante em suas obras, mas talvez essa como nunca extrapole os conceitos do que é ou não real. A inserção da droga JJ-180 rompe todas as barreiras e limites físicas da compreensão de realidade, pois toda a narrativa está mergulhada em permanente suspeição a partir dos fantásticos efeitos do consume da substância. Os tempos e os mundos se esgarçam em diferentes possibilidades enquanto a presença de Sweetcent nos parece cada vez mais etérea e um tanto quanto insana e psicodélica de modo que as realidades se interpõe e se esvanecem levando consigo as convicções de qualquer normalidade existencial;

8 -   Além disso, não apenas o jogo mental e psicológico é extremamente impactante pela experiência, mas o próprio tempo é tirado de suas amarras quando o médico e outros personagens passam a contorná-lo com o uso da JJ-180, e inclusive a utilizá-lo como instrumento e ferramenta política que retorna à questão da realidade porque o poder e a política como demonstra Dick e tantos outros autores, acabam para além da guerra de combate, armas e tiros, atuando numa guerra nem sempre visível, o controle e o monopólio da realidade, talvez por isso a frequente insistência do autor em demonstrar a fragilidade de tal conceito, e isso não se dá pela retórica, mas sim por toda a construção estética de sua narrativa, uma teia intrincada de complexidades e probabilidades onde nada é fixo ou concreto;

9 - Além disso enquanto leitores percebemos neste livro uma dor exponencial que marca a carreira e a vida do autor, mas que aqui parece turbinada com os anseios e dramas e mesmo as duvidas de Dick quanto ao mundo que habita. Há particularmente numa passagem de Sweetcent e suas maquinações filosóficas que se comparada à jornada do próprio autor (e aqui fazendo o lembrete que essa será sempre uma questão complicada e contraditória) leva o leitor reflexões dolorosas e aproximações perigosas mas que contudo não elimina o ambiente desesperador construído pelo personagem de modo que a dramaticidade, a este leitor, nesse sentido foi ampliada. Aliás, há em toda a narrativa certo desespero silencioso, uma dor que oprime sem força, mas com uma insistência solapadora. O ambiente opressivo, paradoxalmente claustrofóbico, e um cenário tanto intimidador quanto imprevisível acaba mexendo com as percepções do leitor;

10 - Enfim, eis um livro tão gigante que cabe nele uma porção de coisas, é distopia politica ao mesmo tempo que ficção científica futurista, é sobre o tempo e sua imaterialidade mas também sobre o universo e guerras planetárias, ao leitor raso uma aventura espacial, e aos leitores que anseiam para além da superfície, é uma narrativa que é verdadeiramente uma mina de debates e reflexões, com diversas camadas a serem descobertas e compreendidas, e acima de tudo, sua metáfora espacial apresenta-se como um potente estudo sociológico do poder e suas artimanhas, enquanto o indivíduo comum - mas não comum - percebe o quão irreal a existência pode ser, ou não. Não deixa de ser, assim como muitos romances do autor, perturbador aos temerosos, mas instigante como nunca aos que buscam as dores e os traumas do conhecimento.


   

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