O Blog Listas Literárias leu Mulheres Esmeraldas, de Domingos Pellegrini publicado pela editora Gutenberg; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Pintado com as cores das narrativas policiais, Mulheres Esmeralda é sobretudo romance brasileiro, impregnado de aventura e ido aos ermos deste país ambientando-se em período recente em termos históricos, época das esperanças de uma redemocratização que acompanha ao fundo os protagonistas que por determinados momentos farão colidirem-se a narrativa com os fatos históricos, de maneira sútil é verdade, mas o suficiente para valorar as abordagens críticas no miolo da ficção;
2 - Mas antes de mais nada dedico-me à questão da literatura policial, que embora toda sua roupagem aparente isso, como diz o texto de orelha "que é mais que um simples romance policial" e suficiente para apresentar as ambições da narrativa, pois como diz Todorov, ao enfeitarmos o romance policial, se faz na verdade, literatura, e parece-me o caso desta narrativa, que sim, tem sua pegada de romance policial, que aliás, trata das peculiaridades das narrativas de crime nacionais, mas que contudo, e no bom sentido, é mais amplo que isso, tratando-se de romance que embora ambientado no ontem, dialoga mesmo é com nosso presente;
3 - A narrativa está ambientada talvez no nosso penúltimo período recente de esperança, enquanto sociedade brasileira: as últimas semanas de 1984, cravejadas pelos bons augúrios da entrada em uma nova era com a eleição de Tancredo Neves e as expectativas com a posse iminente do primeiro presidente eleito* depois de décadas de ditadura. Aliás, caberá ao acontecimento histórico a ruptura da esperança ao final da obra, que contrastará com o desfecho de seus protagonistas, de modo que a mensagem será sutil, mas talvez não menos impactante;
4 - É neste período histórico que Pellegrini ambienta sua trama habitada por personagens diria nostálgicos se observados pelo prisma desta segunda década de Século XXI. Digo isto porque Ele, seu protagonista, hoje não deixa de nos chegar como uma imagem doutros tempos, um repórter da Revista Playboy ao melhor estilo do profissional romantizado, cuja vida é uma aventura, como a que vive ao encontrar um curioso grupo de mulheres garimpeiras no meio da floresta de Alta Mata. Pintando-os todos com certas tintas da sátira, o autor entretanto consegue trazer materialidade a seus personagens, e com isso não só escrever romance, mas também realizar crítica social;
5 - Não que não se possa deleitar-se com a narrativa apenas pelo viés do entretenimento, embora pra isso se precise desprendimento. A bem da verdade o sarcasmo ácido, os diálogos um tanto cirúrgico e a própria constituição de seus personagens nos levam para além do enredo de um repórter metido sem querer no meio da perigosa comercialização de esmeraldas, dos garimpos e da corrupção policial que apresenta-se com longo alcance, pois no meio de toda essa aventura, a discussão do que é o Brasil surge com força;
6 - E o mais interessante nisso é que o autor usa as visões conflitantes de seus protagonistas, Ele e Mariane, uma enfermeira filha de militar e americana para ir construindo os posicionamentos críticos sobre o país. Usa inclusive o artifício da voz estrangeira para da vazão às críticas mais contundentes aos comportamentos sociais e às mazelas do Brasil, mas que contudo, curiosamente, não raro são reclamações populares que ouvimos constantemente por aí. Mariane, no caso, aponta-nos para quase tudo aquilo que o senso comum geralmente mostra como defeitos, enquanto o repórter, simplesmente convive com tudo isso, talvez por que saiba que seja estas incongruências que nos constroem;
7 - Vale dizer ainda que em termos estéticos, embora na maioria das vezes a narração no presente do indicativo me incomode, no caso deste livro não ocorre, ainda que tal escolhe sempre nos atraia atenção pela diferença, já que não é uma escolha usual. Mesmo numa narrativa com tinturas policiais esse elemento não atrapalha a fluência, embora tenha o efeito de reduzir o ritmo da leitura, o que mais uma vez leva-o ao romance, à literatura mais ampla que a perspectiva policial;
8 - No entanto, convém dizer que tais recursos e intenções não prejudicam a tensidade da obra enquanto aventura, que em suas teias de relações, nacionais e internacionais, ocorrem de forma dinâmica e atraente ao grande público de diferentes formas, especialmente dando certo tratamento mítico não só à época mas quiçá às relações sociais e humanas de determinado período que aparenta estar em voga em nossa arte;
9 - E não deixa de ser curioso quanto parece-me que nossa literatura parte para um reencontro com os anos oitenta num momento justamente de novas tensões e ameaças autoritárias. Mulheres Esmeraldas tem um pouco disso, mas tenho lido outras narrativas que do mesmo modo retornam à esta época, em boa parte com certa nostalgia e com a procura por entender os tantos significados daquele momento;
10 - Enfim, Mulheres Esmeraldas pode ser lido apenas como romance policial, como uma aventura inóspita por um Brasil ainda com suas selvas e suas amazonas míticas, com certa nostalgia também, mas certamente aos abertos a interpretações mais amplas, há no romance sumo suficiente para muitos debates e reflexões.
* Tancredo foi eleito ainda sem voto direto, mas é assim que o narrador refere-se a ele.
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