Olhe nos meus olhos e veja as 10 considerações sobre O Ditador Honesto, de Matheus Peleteiro

O Blog Listas Literárias leu O Ditador Honesto, de Matheus Peleteiro publicado de forma independente; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Verborrágico, intenso e de uma visceralidade de superfície, O Ditador Honesto segundo o autor ,"não possui pretensão alguma, senão a de protestar e emitir uma triste gargalhada em desrespeito à hipocrisia popular e à nauseante política nos tempos em que vivemos" e partem daí todas as virtudes e defeitos de uma obra nascida para polemizar (vide inclusive suas escolhas de epígrafes, pois tudo na obra surge para reforçar a ambientação confusa da política contemporânea ao mesmo tempo que nos aproxima de elementos estéticos talvez há muito devessem estar superados, no caso, certa presença constante de ideais um tanto futuristas, isto de um futurismo de um início de século passado e que parece estarmos forçando revivê-lo) e que buscaremos nestas reflexões em lista abordar sob diferentes perspectivas;

2 - Antes de mais nada, penso eu, esta é uma obra que como inclusive apontada pelo autor, é fruto de nossos tempos, portanto, imersa numa série de condicionantes sociais, que, claro, não passam despercebidas. Por isso, neste sentido é interessante termos em mente algumas questões geracionais, que imbicam inclusive nas escolhas lexicais, como o caso do própria expressão "ditador" que surge aqui com todas as nuances do tempo. Vejamos que não trata-se apenas do paradoxo título, creio que no caso da obra alguns elementos são importantes de serem observados nesta avaliação. Do próprio leitor, no caso, eu, filho de uma geração que viu o princípio da redemocratização, no início dos anos oitenta, o autor já de uma geração seguinte, cuja juventude dá-se já num país estável, e da própria obra, cuja ideologia salta de maneira confusa e polarizada como os tempos de hoje, mas, da mesma forma, impactadas pela estética do início do Século XX, ou seja, florescida na intensidade recente mas marcada pelo passado. Tais fatores tem relação direta, não só com esta crítica, mas também com os exageros e ingenuidades que às vezes intercalam-se numa narrativa, que embora pensada como sátira, acaba se afastando dela, não só pela ausência do riso, mas especialmente pelo olhar desesperançado, distópico e não menos desolador como o fato de que já não mais rimos de nossas hipocrisias;

3 - Dito tais comprometimentos e postura desta avaliação, pode-se ainda dizer que a faço tendo em vista a aproximação com outra obra, esta sim do século passado, Não Vai Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis. Em ambas as narrativas temos a abordagem da chegada ao poder de um tirano via possibilidades democráticas, separadas estas por quase cem anos, e, claro, suas nacionalidades, a de Peleteiro impactada pelo cenário brasileiro e a de Lewis com seu temor em relação aos Estados Unidos. Enquanto a de Lewis surge em uma narrativa em terceira pessoa dando conta da chegada de Windrip à presidência americana (a obra ganhou nova relevância após chegada de Trump), o jovem autor Matheus Peleteiro escreve sua obra, que aliás, bem poderia ser um conto longo ou uma novela rápida, a partir de uma voz em primeira pessoa, Antônio, secretário de seu ditador "Gutemberg Luz" num Brasil de futuro próximo. E precisamos tratar uma série de elementos no narrador desta obra;

4 - Antônio, o narrador, é o responsável por toda a estética e pelo próprio mundo construído pela narrativa, e para isso devemos considerar então toda sua (imensa, diga-se) parcialidade ao narrar os acontecimentos durante o domínio de poder de Gutemberg Luz, "o bom ditador", que teria sido eleito em 2026 e assumido postura despótica no poder, causando caos e revolta (e também seus opostos). Tal parcialidade é explícita nas considerações de amizade e nos eufemismos do narrador para com o tirano, de modo que ele acaba permanecendo sempre sobre um muro de compreensão enquanto narra atrocidades e as relativiza, característica a qual o narrador manterá por toda a obra;

5 - Junte-se (e some-se) à sua parcialidade todas as outras contradições deste narrador, centro de uma urgência visceral (ainda que narre os fatos posteriormente ao seus acontecimentos em tom de memórias), que assim como propunha o futurismo de Marinetti conta tudo à velocidade de uma máquina, e com sangue e guerra. Tal intensidade e rapidez até superficial com que narra cria certa distância que contrasta com a própria urgência, como que se forçasse a leitura veloz em detrimento da reflexão, algo que combina, claro com a proposta da obra. Todavia, e aqui trazendo novamente a leitura paralela de Não Vai Acontecer Aqui, do mesmo modo que ao aproximá-las falamos bem da obra de Peleteiro, acaba também ressaltando algumas questões importantes de distinção. Por exemplo, na obra de Lewis a narrativa acompanha a perspectiva de um jornalista idealista - mas dotado das falhas humanas - que vê impotentemente o país ser tomado pelo tirano, enquanto esta narrativa surge de dentro, ou seja da proximidade do próprio tirano, o que poderia fortalecer o convencimento quanto aos atos do ditador, mas que não ocorre...

6 - Não ocorre porque Antonio é um narrador frágil. Sofre, penso eu, por três problemas, e nenhum deles é a subjetividade já característica das vozes em primeira pessoa. O primeiro ponto é a questão da parcialidade que o impede-o de descrever o tirano em sua plenitude, algo que o faz como um pai protetor relativizando os crimes de um filho problemático; a segunda questão é a própria superficialidade que nasce então desta perspectiva, pois toda a urgência e pressa desta voz narrativa impossibilita qualquer busca profunda na complexidade dos principais personagens, e, ainda a questão da própria autoridade inverossímil do secretário Antônio, que embora aparentemente figura próxima do ditador, pouco mais teria a nos falar de seu patrão que o serviçal mais subalterno do palácio. Antônio não nos convence com secretário. Entretanto, eis que aí pode residir mais ou menos conscientes algumas armadilhas ao leitor, visto que se por um lado nos parece pouco provável que alguém em função tão dentro do poder narre os fatos de forma tão distante dos acontecimentos e tão desprovida de reflexões internas ou ais elaboradas, por outro, podemos investigar a intencionalidade dessa distância criada pelo narrador que às vezes nos leva à dificuldade de vê-lo como secretário do tirano;

7 - A isso tudo, cogito entretanto, talvez tenha muito mais relação com o tempo externo, tão confuso e urgente quanto a voz narrativa desta obra, que volto a frisar, independente das pretensões conscientes ou não do autor, imagino refletir a confusão ideológica que talvez mostre a superação de termos direita, esquerda e centro. Isto porque, proposital ou não, a narrativa desinforma e confunde, e em seu ritmo agitado e veloz, o ditador que candidata-se com propostas de esquerda, parte para atos de direita, mas repetindo sempre o padrão natural de qualquer tirania, a pretensão por um suposto idealismo que se coloca como único a saber o que os outros precisam, caso de Gutemberg e suas pretensões políticas e sua autodenominação como herói de um país fracassado; assim, seus movimentos se dão sempre de maneira um tanto insólita e carente de certa coerência realística, o que seria problema não fosse o caráter satírico - mas sem riso - da obra. Ao fim, os acontecimentos narrados elaboram uma grande salada de ideias desvirtuadas e confusas que até mesmo ecoam no tempo da própria narrativa, ficando sempre aquela aura de imprecisão de suas possibilidades, tanto que as realizações e atos se dão em tempos exíguos, mas de percepção diferente, alongada e espichada, quase sempre desprovidas de uma plausibilidade factível dos processos envolvidos (coisas de meses, que demandariam anos, poe exemplo). Com isso, seus resultados, não fosse o insólito, soariam um bocado improváveis. Mas creio que aí esteja justamente a maior força do trabalho, no implícito ou no mascarado pela aparente superficialidade há algo gritando o quão insano tudo soa;

8 - Além disso, mesmo na aparente superficialidade, não se pode deixar de observar que tanto a obra quanto suas personagens são embebidas em muitos intertextos, que vão dos paradoxos orwellianos ao pesamento político de Maquiavel, que veja bem, norteiam o presidente, e aqui, talvez o exagero, chamado de ditador, mas que mesmo agindo com repressão e violência, com despotismo e tirania, o faz não por meio de um poder totalitário (aí talvez a maior distinção entre as distopias clássicas e a obra, que de certo modo converge para comas brandas distopias dos anos recente que ampliam as desconfianças para com o poder), mas pelas fragilidades de um sistema democrático. Diferente de seu romance próximo, já falado aqui, em que Windrip como Hitler parte da democracia para até assumir o poder totalitário, Gutemberg Luz, pelo contrário, além de perdurar por pouco tempo, menos uma ditador é sim um manipulador das forças e dos meios, entretanto não deixa de produzir um cenário desolador e sombrio;

9 - Posso dizer, portanto, que este é um livro curioso, cheio de armadilhas e percalços que propositalmente ou não reverbera uma confusão política que vai da ingenuidade à incompreensão do sistema enquanto falho. O narrador é como uma grande nau à deriva nos conceitos e nas bandeiras ideológicas do presente, juntando tudo numa mesma bacia, o que não é raro de se observar em muitas coisas do real. Com isso, pretendo dizer que se apresenta um desafio a observá-lo a serviço de algo, sem qualquer serviço, ou mesmo um grito por lucidez. Mergulha no insólito e no inverossímil ao mesmo tempo que se pode apresentar-se com tantas semelhanças de nossa política presente, estabelecendo um jogo bastante curioso de relações;

10 - Enfim, O Ditador Honesto pode conter exageros ao mesmo passo que conduz a eufemismo, é uma obra de antítese, não trata-se de uma distopia, não em seu modo clássico, mas claro, bebe muito dela, assume-se sátira, mas não nos faz rir, pode ter certeza, e contundente e frágil cuja grande virtude é revelar como as fronteiras e as nuances das ideologias e seus conceitos estão sob névoa densa, névoa que aliás mais serve aos tiranos que aos libertários. Não duvido que despertará nos leitores percepções diversas, da compreensão à incompreensão, é pois um grande desafio, cujo ritmo urgente talvez apenas finja mascarar a grande crítica a que se propõe, e assim entre exageros e ingenuidades, é uma interessante obra que talvez o distanciamento poderá acurá-la.



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