10 Considerações sobre Não Me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro ou sobre um mergulho no estranho

O Blog Listas Literárias leu Não Me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro, Nobel de Literatura em 2017; Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre a publicação da Companhia das Letras, confira:

1 - Não Me Abandone Jamais é um mergulho no estranho, pois sua trama envolve-nos numa atmosfera insólita que transforma o irreal numa possibilidade concreta, de modo que quanto mais avançamos em sua leitura, mais nos defrontamos com um cenário absurdo, contudo palpável e possível possibilitado pelos inúmeros erros que a humanidade é capaz de cometer ao longo de sua jornada;

2 - Narrada por Kathy H. a voz em primeira pessoa é tomada por grande subjetividade, e entre seus buracos de memória e as coisas que narra sobre si, vamos construindo todo o cenário de pistas que vai sendo descortinado pelas lembranças de Kathy com suas relações e experiências vai gradualmente colocando-nos a par de uma situação inusitada e chocante tratando de alguns limites éticos da ciência;

3 - Todavia, a subjetividade da voz narrativa aliada a sua pouca confiabilidade, em muitos momentos expressas pelas próprias incertezas da narradora é um detalhe de grande interesse na obra, pois estabelece um interessante jogo. Se por um lado a própria Kathy não mostra-se confiante com suas memórias e lembranças, isto tem por efeito que nos faz prestar atenção nos pequenos detalhes que possam conter falhas, uma ou outra experiência que pode não ter sido bem assim, contudo, se isso nos faz aceitar e concordar com estas pequenas incongruências cotidianas, por outro lado, esta mesma subjetividade faz por tornar mais sólida a questão crucial da obra, que é justamente o que é e quem são os jovens moradores da Hailsham;

4 - Aliás, assim como no recente O Gigante Enterrado, em Não Me Abandone Jamais, a memória terá na obra papel central na sua estrutura, pois é a partir das reminiscências de Kathy que toda a narrativa será amarrada, de modo que este é um fator condizente com os próprio lapsos da narradora, que como já dito aqui, funcionam para elevar outras questões da narrativa ao mesmo tempo que não desprezam o caráter maleável e pouco seguro que são as memórias;

5 - Assim, é como se a leitura fosse afundando-nos num grande pântano. Na verdade, talvez uma analogia mais aproximada seja a de alguém preso em areia movediça. Vamos lenta e gradualmente afundando na narrativa como um incauto no banco de areia, e quanto mais afundamos, mais angustiante vai tornando-se o cenário presente, pois o universo estranho criado por Ishiguro embora tenha a ver com tecnologia, especialmente na área da medicina, está totalmente longe disso, porque no centro de tudo está o humano, e simplesmente por escrever esta última frase, já denuncio minhas escolhas sobre quem são os habitantes da Hailsham;

6 - Não menos curioso, ou nada de curiosidade, é o fato de que a obra também não deixa de ser um romance de formação, especialmente porque nele estão presentes e visíveis as principais fases de construção de identidade e valores humanos. A narrativa, quero dizer, marca as mudanças e as evoluções, não apenas da narradora, mas daqueles que a cercam, como o fim da infância, a adolescência, época de efervescência hormonal, e a própria passagem para o mundo dos adultos que é quando nos deparamos com algumas verdades que nos trazem a consciência de quem nem tudo são flores, ou então quando se descortinam coisas que antes pareciam envoltas por névoa. Nesse sentido, a obra é quase um guia da infância ao mundo adulto;

7 - Tudo isso gera o contraste narrativo que permeia todo o romance e que acaba elevando as notas de terror presentes na candura ingênua com que a narradora vai construindo seu universo de existência de modo que mesmo tendo o leitor já pela metade da narrativa a ciência de tudo que acontece, a naturalidade e mesmo a resignação e falta de estranhamento com que Kathy descreve tudo acaba por ampliar o estranhamento presente no romance;

8 - Mas enfim, do que trata-se o universo de Kathy? Não querendo entregar em demasia, a obra tem elementos como os do filme A Colônia, entretanto com uma abordagem muito diferente, com seu estilo bastante inglês e ares vintage que tornam o romance bastante peculiar em suas características, principalmente as referentes a filiação de gênero;

9 -  Assim, a obra tem um pouco de muitos gêneros, como a desesperança e o aspecto sombrio das distopias, o horror e o assombro do suspense e do terror, um pouco da ficção científica e mesmo algo dos thrillers, especialmente pela forma de narrar de Kathy composta de inúmeros ganchos que fazem-nos saltar sempre para frente da leitura em buscas das pistas deixadas pela narradora que formam uma espécie de trilha de migalhas de pão, e aqui mais um elemento, a atmosfera estranha dos contos da fada cujo universo é sempre perigoso e sombrio aos jovens;

10 - Enfim, Não Me Abandone Jamais possui a opacidade necessária às grandes obras de arte da literatura. Com sua narrativa estranha e insólita joga-nos num cenário improvável que se torna possível a cada página, construindo dessa forma o assombro que nos impacta durante a leitura. Ou seja, uma obra que uma hora ou outra necessita estar entre nossas leituras.



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