10 Considerações sobre As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley ou sobre intolerância e fé

O Blog Listas Literárias leu As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, em volume único publicado pela editora Planeta; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o Livro, confira:

1 – Não é à toa que As Brumas de Avalon cada vez mais vai tornando-se um clássico da literatura de fantasia, e por que não, da própria literatura. Com uma narrativa densa e qualificada a obra traz uma visão bastante peculiar das lendas arturianas e ressignifica pela perspectiva das mulheres os mitos e as crenças, trazendo para o romance uma visão assim, mais ampla, a partir do olhar de Marion Zimmer para a cultura daqueles tempos remotos mas que ainda ecoam entre nós;

2 – Dito isto, comecemos então por talvez o elemento mais relevante da obra, visto que entre tantas obras a tratar das lendas arturianas, Bradley conseguirá atrair a atenção por justamente trazer a baila o olhar das mulheres a uma lenda de feitos heroicos masculinos. Publicada originalmente em 1982, o livro nasce num período em que as lutas das mulheres e do feminismo vem se consolidando na sociedade, deste modo nada mais justo e necessário que as histórias também passem a trazer a perspectiva da mulher, especialmente porque não podemos desconsiderar, inclusive na fantasia, a predominância da presença masculina, entre heróis e vilões, enquanto as mulheres não passam como acessórios às grandes jornadas. Nesse sentido, ao criar suas Brumas a partir do olhar da mulher, reafirmando o papel das mulheres para a história e dando-lhes o devido protagonismo, numa obra tão relevante quanto O Senhor dos Anéis ou As Crônicas de Nárnia, para a fantasia, além é claro de toda sua relevância para o universo arturiano a autora não deixa de apresentar um manifesto pela inclusão das mulheres nos registros das grandes historias;

3 – Assim, acompanhamos o reinado do Rei Artur pela perspectiva das sacerdotisas de Avalon, especialmente Morgana, Morgana das Fadas, que entre brumas e o mundo real testemunha as mudanças da Bretanha, mas não só testemunha, também tomando parte no devir histórico de forma ativa, errando ou acertando ao longo das décadas, sempre imbuída por suas crenças e escolhas, e ainda dividindo a sua voz em primeira pessoa com a narrativa em terceira que desfila todos os acontecimentos da ascensão e queda do lendário Artur;

4 – Mas o grande elogio ou mensagem de Bradley para as lutas femininas não está em trazer a perspectiva das mulheres para a narrativa, mas sim pela forma que ela constrói a trama, sem romantizar ou idealizar as relações (e o romantizar que falo aqui, vale o aviso antes de interpretações medonhas, é algo que homens e mulheres fazem com as narrativas), mas sim expondo-as em suas contradições, incoerências, e principalmente vilania e despropósitos do papel da mulher, não somente para a época em que se passa, mas também para a ideologia religiosa, no caso o embate entre os costumes “pagãos” dos druidas e o cristianismo. É justamente por haver na corte de Artur um papel específico a ser desempenhado pelas mulheres, que Morgana será sempre vista como a estranha, a feiticeira, a malvada, pois como qualquer outra revolucionária das lutas das mulheres, a mensagem sempre presente em seus atos e escolhas “é o de que a mulher é única “dona” de si mesma”. Aliás, será em boa parte por essa capacidade das mulheres do lago, especialmente Morgana, em buscarem e fazerem seus próprios desejos, que pelo olhar de Bradley, causará os grandes atritos entre Morgana e Gwenhwyfar, ambas jogadas pelo destino em uma tumultuada e delicada rede de relações e intrigas e dos demais que não aceitam as subversividade de Morgana;

5 – Além disso, a perspectiva feminina no livro não ameniza a brutalidade da guerra e da intolerância, pelo contrário, amplifica-a, pois para além da violência do mundo dos homens, ela se dá também com as mulheres, o que dá-nos a impressão de a sofrerem em dobro. Sem falar, que no caso do romance, outra de suas virtudes, as mulheres não apenas sofrem com a violência social lhes impostas, mas também a praticam, num jogo muitas vezes sangrento e perverso que traz uma igualdade mais real e palpável, pois é capaz de dar contornos complexos e intrincados a todas as suas personagens;

6 – Todavia, se já temos assunto para dezenas de debates sobre o livro a partir da participação feminina, quando partimos para os mitos e as crenças, então nem se fala. Com muita propriedade a obra vai debater, questionar e refletir ao longo de suas páginas, e são quase mil, o embate entre crenças, mas não sem certa parcialidade, porque teremos aqui uma discussão muito forte a respeito da utilização da fé pelo poder. Essa é a grande metáfora do romance que põe em conflito as sacerdotisas da Deusa com o próprio Artur, alçado ao posto com o apoio de Avalon, mas que vai paulatinamente “sucubindo” ao cristianismo substituindo com tirania silenciosa uma crença pela outra, de modo que pouco a pouco os ritos antigos vão sendo expurgados, e senão pela força autoritária da espada, por uma série de atos não menos violentos aos que criam nas antigas crenças, como os druidas, ou a própria deusa;

7 – Na verdade o que a partir da segunda metade do livro vai se estabelecer é um intenso debate sobre religiosidade, especialmente com as críticas ao cristianismo, que no Romance terá em Lancelote um peculiar personagem a se observar. O debate dá-se justamente pelas questões políticas envolvidas com o poder crescente dos padres, e numa luta, em grande parte desproporcional, dos portadores das fés antigas em tentarem não deixar morrer a suas próprias crenças e rituais. Isto porque neste interlúdio de paz entre as espadas ocorre uma guerra voraz entre símbolos sagrados, com os representantes cristãos (os padres) assumindo sua respectiva fé como a única possível, o que levará ao reino de Artur problemas que bem já conhecemos. Vale, contudo, diante da oposição e luta de Morgana e das outras mulheres do lago, dizer que, provavelmente por causa da própria ideologia em que acreditam, haver certa absolvição do Cristo em si, enquanto não se poupa de desnudar as táticas de luta e poder da Igreja, debate que aliás permanece não resolvido, porque especialmente nos últimos anos temos visto crescer na internet as mensagens que desmascaram o quanto as ações “daqueles que falam em nome de Cristo” são exatamente opostas o que foi atribuído ao próprio;

8 – Desse modo, ao passo que cada vez mais os padres vão tendo influência na corte de Artur, e quanto mais a opressão à crença e ao próprio conhecimento vai aumentando, o romance vai tomando-se de um sentimento de desamparo e impotência e assim mergulhando cada vez mais Morgana num caldeirão de fracassos ou erros que culminarão não só para o fim do romance, mas para o próprio fim de Camelot e seus dias de glória. Nisso, mais uma grande virtude da narrativa, os esgarçamento e o desgaste do tempo torna-se perceptível ao leitor e a decrepitude de tudo constrói uma aura deveras interessante aos momentos finais do romance, que sobretudo carregará ainda assim uma mensagem de fé, e a despeito do aparente fracasso de Morgana das Fadas, ao final, sua ideologia e sua crença bem mais ampla e menos punitiva será ratificada pelos desfechos da obra;

9 – É portanto uma obra extensa e complexa, que ao tratar do mítico Artur e de uma forma mais ampla e com novos olhares, vai para além da lenda. As discussões presentes dão-se internamente no âmbito dos cavaleiros da távola redonda, externamente a uma época de cosolidação de lutas que em parte são contempladas pela narrativa, e por questões e debates que ainda hoje são necessários, especialmente ao expressar claramente a necessidade de sermos livres para cultuarmos os deuses que escolhemos, ou não cultuar, afinal, enquanto tais forças criadoras não descerem de seus olimpos e édens, quem poderá dizer ser o único portador da verdade? Por isso a mensagem druídica em As Brumas é bem mais inclusiva e tolerante;

10 – Enfim, se não disse até aqui que tem luta de espada, feitiçaria e magia é porque não é preciso. Tudo o que você já viu em outras abordagens arturianas estarão neste romance, elas, mas também muito mais coisas. Com personagens complexas, enredo impactante e o  velho triangulo amoroso que já ouvimos falar, As Brumas vai além em sua narrativa e fala de poder, e também em liberdade, uma liberdade não a de Artur, mas sim a de Morgana das Fadas, e acredite, esta uma liberdade bem mais ampla que a do Rei, este que jubilando-se na paz das espadas mas cego à guerra de poder ou não escolher sua própria crença, em ser livre plenamente, especialmente nos pensamentos e na fé. Isto todavia nos abriria a um outro debate, o de como mesmo após as pequenas revoluções, Morgana das Fadas não consegue escapar de concepções compartilhadas por muitas crenças de que há uma força que controla nossos destinos.



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