10 Considerações sobre O Irlandês, de Charles Brandt ou sobre pintores de paredes

O Blog Listas Literárias leu O Irlandês, de Charles Brandt publicado pela editora Seoman; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - O irlandês é um destes livros que não podemos deixar de ler. Em algum momento temos de enfrentá-lo. E sua leitura é impactante, especialmente porque a despeito de sua questão biográfica e histórica temos a sensação de uma narrativa ficcional de alto fôlego - e pensá-lo em comparação a O poderoso chefão é quase impossível. Um livro sobre a máfia, a máfia visto de dentro; e mais que isso, um livro também sobre política e poder, um livro interessante no retrato da propagada democracia norte-americana;

2 -  O livro narra a trajetória do membro da máfia e sindicalismo americano, Frank Sheeran, O Irlandês. Deste livro foi a realizada a adaptação da Netflix indicada a 10 prêmios Oscar. Aliás, há uma convergência muito grande entre livro e filme de modo que é possível dizer que a adaptação capta a essência da narrativa de Brandt, como a escrita de Brandt já está carregada pela ação visual e detalhista como no filme. No livro a confissão de Sheeran e elucidação de um dos maiores mistérios norte-americanos, o desaparecimento de Jimmy Hoffa, sindicalista mafioso dos anos 50, 60, e 70 nos Estados Unidos;

3 - Jimmy Hoffa foi considerado um dos homens mais poderosos daquele país àquela época. De atuação sindical que cobria os terrenos mais ordinários à mais alta esfera de poder americano, Hoffa foi um dos padrinhos do próprio Sheeran no sindicalismo - e na máfia. Nesse sentido, o livro é tanto sobre Sheeran quanto a história de Jimmy Hoffa;

4 - Aqui devemos fazer uma inflexão sobre o livro, que no título original "Você pinta paredes?" - código para assassinato - é produzido e escrito. A obra é fruto do investigador Charles Brandt, autor de obras de ficção a partir de crimes reais e que se tornaram famosas nos Estados Unidos. No livro ele consegue a partir de entrevistas com o próprio Frank Sheeran no final de sua vida e pretensamente influenciado por certa necessidade humana de confessar e acertar suas contas, segundo, Brandt. Em todo o processo da escrita, Brandt ouviu Sheeran e escreveu o livro, este posteriormente posto para aprovação final do próprio Sheeran;

5 - Nesse sentido podemos dizer então que a narrativa vai equilibrando-se entre as duas vozes. É como se em grande parte fosse um "romance" narrado pelo próprio Sheeran a partir das entrevistas, dos áudios e também das informações disponíveis e públicas noutras fontes. Brandt escreve como se Sheeran narrasse os acontecimentos. Há de atentar-se especialmente para o desfecho e clímax com que é narrada a cena do assassinato de Hoffa. Ali os elementos literários parecem ser usados para ampliar a dramaticidade e dar elasticidade ao tempo. A voz de Sheeran em tom confessional, será, portanto, preponderante na narrativa...

6 - Mas o próprio Brandt intervirá com sua voz em momentos que parece querer contrapor ou mesmo afirmar elementos narrados por Sheeran. Aqui a voz em terceira pessoa procura por afastamento e e busca certa tecnicidade na escrita. Provavelmente com o intuito de encontrar credibilidade ao todo. Brandt estará também presente no posfácio e epílogo do livro quando tenta aparentemente costurar todos os pontos e reforçar a principal tese do livro e validar a confissão de Sheeran: ele matou Jimmy Hoffa;


7 - Dito isto, e voltando à nossa comparação ao Poderoso Chefão, é um livro que conta de dentro a postura e cultura da máfia americana a partir de um dos seus homens mais violentos. O Irlandês. Em Puzo o relato é condizente, mas temos sempre a lembrança por vezes amenizadora "é ficção", enquanto aqui em Brandt a naturalidade com que essa cultura lida e considera poder, política e morte quase se torna irreal, pois nos alarma conhecer tal submundo violento que é bem menos "sub" do que podemos imaginar;

8 - E aí temos detalhes interessantíssimos. A leitura pode evocar memórias e comparações recentes com o próprio Brasil e suas tantas malas milionárias. Em determinado sentido, Brandt toca não apenas a máfia, mas a política americana a tal ponto que já não se pode dissociar uma de outra. O processo eleitoral, a compra de alianças e a corrupção nas esferas governamentais fazem pairar sobre tudo a sombra de um grande esquema que já não se sabe mais quem controla quem. Máfia e política, política e máfia. Casos como Watergate e a relação de Nixon com a máfia mostram as entranhas sujas desses jogos de poder, não muito diferente de nossas malas e cuecas. A reflexão sobre financiamentos eleitorais é deveras interessante como motivação acessória para leitura da obra;

9 - Mas voltando a Sheeran, temos aqui a história de um homem e sua relação com poder e violência. Tudo isso em grande parte aceita pela própria sociedade, vida a festa em sua homenagem reunindo figuras importantes. Há na sua confissão e também na voz de Charles Brandt certa tentativa de imiscuir o assassino frio com certa tentativa de imputar à guerra e ao abandono dos soldados que lutaram a Segunda Guerra como responsável pelo homem que viria a se tornar Frank Sheeran. Não discordo que a guerra não traria tais efeitos, mas a questão parece-me mais complexa que isso. As raízes de sua radicalidade naturalista vão além da guerra e outros elementos deveriam ser sopesados, inclusive os sociais...

10 - Enfim, O irlandês é uma leitura indispensável para quem curte boas e relevantes leituras. Inclusive me surpreende o fato que mesmo com a adaptação, o livro não seja ainda muito popular no Brasil. Mereceria por diversas razões maior atenção. É leitura de impacto histórico, mas que também levanta diferentes reflexões para as estruturas sociais, além é claro, por ser uma narrativa que ao mesmo tempo traz um universo aparentemente distante, mas tão próximo de nós. Um lugar e uma cultura em que a máxima roseana é levada à radicalidade "viver é muito perigoso". Curioso que a despeito de viver sempre em alerta, Sheeran e alguns de seus cumplices chegaram à velhice.  

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