10 Considerações sobre É assim que se perde a guerra do tempo, ou sobre tentativas de dar ordem ao caos

O Blog Listas Literárias leu É assim que se perde a guerra do tempo, de Amal El-Mohtar e Max Gladstone publicado pela editora Suma; Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - O tempo é poesia; é encanto; é mistério; é caos; com imagens fantásticas e uma prosa extremamente poética, É assim que se perde a guerra do tempo dá novo vigor à ficção científica (pois deixa claro que há muito do que se imaginar ainda no gênero) numa narrativa carregada de imaginação e imaginários que deslizam por entre seus filamentos do tempo, olhando para a frente, para trás, em todas as direções possíveis de um multiverso encantado onde ciência e magia parecem não possuir mais fronteiras. Fantástico é um adjetivo bastante justo para sua genealogia e aura;

2 - Logicamente, aos seus leitores, ser-lhe-ão cobradas grande capacidade de leitura metafórica. A narrativa será tecida por elas, num jogo que ao mesmo tempo toca o futuro, mas também nos atira a tempos de uma linguagem semântica e simbólica. Aos leitores do livro será então realizado o convite a uma jornada pela riqueza das figuras de linguagem; isso em tempos da objetividade técnica é deveras interessante. Ademais, as figuras de linguagem por certo estruturam e dão corpo à aura da obra, conferem-lhe não apenas o lirismo, mas o impacto visual necessário a nós na compreensão e visualização do ambiente psicodélico e onírico em que tudo ocorre. A seu modo, o romance não deixa de ter o caráter de um sonho;

3 - Montado com se fosse uma tessitura, tal como a tessitura que fazem suas protagonistas - e agentes - nos filamentos espaço-tempo o romance é narrado por uma voz em terceira pessoa, em uma de suas partes, a que se apaga, diante da grandiloquência das duas vozes epistolares das protagonistas do romance, Red e Blue, agentes das duas instituições que travam uma batalha nesta "guerra do tempo";

4 - As cartas - epístolas - mútuas é que concentram a grande riqueza visual e metafórica da obra. A linguagem de ambas é quase que um elo perdido, ainda que uma delas prime pela técnica e pela objetividade computacional. Duas agentes inimigas que ao contatarem-se uma a outra dão início a uma nova coisa, não apenas no campo coletivo da batalha que travam, mas no campo de suas individualidades, e aqui um jogo interessantes. No universo de ambas, seja uma rede ou um jardim há o primado do coletivo, do nós em detrimento do Eu, algo que a troca de cartas (cartas peculiares, diga-se) acaba interferindo de forma bastante substancial;

5 - Entre os efeitos, claro, aquilo que parece mover-nos também pelo espaço-tempo. O amor. A troca de mensagens entre duas estranhas e adversárias personalidades acaba gradualmente levando à empatia, e dessa ao amor. Um amor simbólico, de uma linguagem poética e carregada de um curioso erotismo desprovido de carga sexual. Está mais para algo transcendental, mágico, em determinado sentido. Ao passo que a troca de cartas avança, ambas tentam entender uma a outra, com isso, também o que fazem, o jogo incerto que disputam. Nessa guerra temporal o amor é um personagem que não se presta a coadjuvante;

6 - Por isso a guerra em si parece mais distante que a paixão entre ambas. Agentes de grupos contrários, Red e Blue deslizam por diferentes filamentos, entenda-se aqui cada filamento como uma espécie de multiverso com seu próprio tempo e espaço, passam a eternidade a agir em busca da vitória de seus grupos, entre assassinatos e nascimentos, trabalham de acordo com a narrativa como uma espécie de organizadoras do equilíbrio desta "manta" cheia de filamentos e tessituras que é o tempo;

7 - Todavia, imagino que os leitores perceberão dois movimentos distintos e relevantes na constituição de ambas que a seu modo expressam nosso presente e a sua recente cisão entre analógico e digital. Blue está ligada à Jardim, referência mais que explícita. Sua transcendentalidade está ligada à terra, à Gaia. O tempo-espaço dentro de cada criatura viva deste universo, seu olhar, portanto, mira a magia do natural, da natureza, dos sentidos, especialmente. Blue é a personagem dos sentidos, da espiritualidade...

8 - Red, por sua vez traz o transcendental evolutivo das redes tecnológicas. Por isso parece evocar o futuro, a ciência, os bits, tão rico em filamentos espaço-tempo quanto o jardim de Blue. É a parte da objetividade, da matemática, dos computadores. E aí talvez a proposta essencial da narrativa, a demonstração de que ambas as partes em algum momento serão a mesma parte de um todo, que se fundem, que transcendem pelo espaço-tempo, ou seja, a ficção-científica em sua gênese, marcada não apenas pelos aparatos da técnica, mas também do "espírito";

9 - Talvez por isso o principal problema da proposta seja o de cair justamente naquela armadilha que temos dificuldade de escapar. Nosso imaginário e nossa linguagem há muito tenta organizar o caos, cria deuses e tecnologias capazes de orquestrar as camadas subterrâneas do existir. Advogam nossa necessidade de tutela, de designers que tecem nossos destinos - afinal, parece ser o que fazem ambas agentes. Não aceitamos o caos, por isso, seja Jardim, seja a Agência, tendemos a construir narrativas que tentem explicar o caótico, o inexplicável;

10 - Enfim, É assim que se perde a guerra do tempo é uma fantástica narrativa visual que sobretudo demonstra vigor de um gênero que antes olhava para o futuro e cada vez mais parecia preso ao nosso presente. Imaginativo, simbólico e tecido com figuras que estimularão as mentes de seus leitores, é ótima leitura que transpassa seu próprio gênero.

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