10 Considerações sobre Sem Relva, de Carlos Eduardo Amaral, ou sobre gigantes-engôdos

O Blog Listas Literárias leu Sem Relva, de Carlos Eduardo Amaral; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Sem Relva já dá alguma ideia de certa desilusão pelo título, algo que se confirma com seu desfecho final um tanto provocador e destinado à polêmica. Nessa pegada melancólica, a narrativa se coloca nos limiares do conto, da novela e mesmo do romance, e é uma tentativa de trazer para o debate literário a primavera brasileira, primavera esta que nos atirou ao inverno tenebroso do reacionarismo. Nesse aspecto é preciso observar que a obra nem escolhe entrar nesta discussão, como em suas lentes carrega grande parcialidade e certa postura tendenciosa que acaba não conseguindo observar no todo, a complexidade das ruas em chamas;

2 - Ambientada no Recife, a narrativa parte dos acontecimentos de um dia na cidade, com a ação de movimentos em defesa do transporte público e a participação dos black blocs que entram em confronto com as autoridades policiais. Aí a alusão parece-nos bastante clara ao nosso recentíssimo passado, um passado visto pelas lentes de seu autor que parece focado numa única explicação. Assim, todo o enredo gira em torno da prisão de ativistas black blocs levados em segredo a uma unidade da polícia, enquanto estes negociam com seus familiares a coberturas dos custos da depredação;

3 - E antes de entrarmos nessa discussão sobre a abordagem temática é interessante tratar de alguns bons ou interessantes elementos estéticos na construção da narrativa. As vozes são um tanto interpenetradas ao mesmo tempo que cambiantes, às vezes numa terceira pessoa disfarçada, noutras em diferentes primeiras pessoas. Além disso, temos o prelúdio narrado por Pretonha, uma gata preta que tem destino trágico no meio da confusão. Tudo isso confere ao texto bastante autenticidade, somada ainda os momentos que a narrativa é atravessada pela dissertação, o que não é comum no gênero;

4 - Dito isto, voltemos ao enredo e tema da narrativa. Tudo está centrado no interrogatório extraoficial ao grupo preso. É curioso e interessante que veremos aqui uma forte constituição crítica. A instituição polícia é vista com desconfiança, em muitos momentos explícitas, outras no campo do implícito. De todo não fica clara a intenção da ação, no mínimo sob legalidade discutível, realizada no quartel. As intenções parecem girar na investigação das fontes de financiamento do grupo, como na intermediação pacífica com as famílias dos detidos de modo a custearem os prejuízos, mas manterem ficha limpa. No ar, pairando sempre a ilegalidade e possível corrupção, além, claro, da tentativa de denunciar certa hipocrisia estrutural;

5 - E é aqui que talvez a narrativa peque pela parcialidade ou visão tendenciosa, que por si só não seria problema, não fosse o fato de que empobrece uma análise de maior alcance. O ranço do autor para com a esquerda parece ser a possibilidade, salvo enganos de interpretação. Porém, é para isso que apontam as possíveis incongruências denunciadas pela narrativa. Para ela, a narrativa, toda aquela agitação estaria ligada a uma esquerda, burguesa e alheia aos verdadeiros proletários. Parece, entre outras coisas, tentativa de deslegitimação dos movimentos. Um bando de filhinhos de papai e mamães financiados por partidos de esquerda a botar fogo em ônibus. É o que mais que insinua, diz a narrativa. Ainda que dentro de uma ficção, o problema aqui é que se avança por algo ainda muito contraditório e não de todo esclarecido: a origem dos black blocs;


6 - O problema se acentua, penso, justamente porque tais ações aludem ao nosso passado recente e que não se pode afirmar com certeza a fábrica da jamanta que atingiu o país. Longe de qualquer ideal revolucionário, tais movimentos, hoje sabe-se, também campo de extremistas reacionários, de modo que nos parece capenga não tratar a questão num viés ambidestro. Contudo, o foco de Amaral nos parece um tanto claro, explícito, o que pode nublar outras questões interessantes na narrativa;

7 - Por exemplo, a questão pentecostal. Jonas, protagonista da narrativa é filho de um pastor pentecostal. Um filho como em geral são os filhos, a voz da rebeldia e da oposição, o dedo delator. Ele é um dos aprisionados no quartel da PM, e por meio dele a narrativa avança demonstrando as diferenças, nuances e avanços das igrejas pentecostais pelas periferias urbanas;

8 - Há nessa questão, inclusive, certa tomada de posição crítica. Nesse caso, bem coerente. O contraste entre pai e filho parecem querer denunciar as hipocrisias deste avanço pentecostal. Há certo questionamento de conduta, levado à radicalidade com o desfecho final de suas últimas linhas;

9 - Todos esses fatores tornam o livro filho destes nossos tempos. Talvez por isso, por vezes caótico, impreciso em determinadas intenções. Há o bom estranhamento em todas as posturas apresentadas, a marca é da dubiedade das intenções, mas que por vezes pecam justamente quando parecem querer afirmar ou propor algo. Tudo isso leva-a à peculiaridade, sem dúvidas. Esta a grande virtude, por certo, da narrativa. Há no todo algo de estranho, desde teceres muitas vezes por pontos de natureza pouco nítida, como as fluidez interpostas de vozes e mesmo dos tipos textuais. Há em muitos momentos a invasão do pretenso jornalístico, noutros o dissertar tal qual um artigo acadêmico, tudo isso entremeado entre às pessoas literárias, um conjunto o qual as mãos manipuladoras do autor estão sempre presentes;

10 - Enfim, Sem relva é leitura a ser assimilada, deglutida. É interessante em suas experimentações, peca reforçamos por suspeita parcialidade. Ainda assim é capaz de trazer aspectos críticos relevantes, cabendo ao leitor distinguir entre os pecados e os acertos da leitura de mundo proposta pela narrativa.

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