10 Considerações sobre Jurassic Park, de Michael Crichton ou sobre mexer com aquilo que não se deve

O Blog Listas Literárias leu Jurassic Park, de Michael Crichton publicado pela editora Aleph; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Eletrizante como devem ser os thrillers e visionário e problematizador como o é a ficção científica, Jurassic Park, o livro, é capaz de transcender o mero entretenimento e para além das criaturas gigantescas despertadas, apresenta debates relevantes às sociedades no que tange as tecnologias e as ambições de poder do homem;

2 - Mas antes de adentrarmos aos elementos interessantes da leitura, é preciso dizer que embora certa fidelidade entre obra e adaptação, são narrativas um tanto distintas no que diz respeito às complexidades envolvidas, o que, diga-se, é muito comum na transposição de livro para filme. Enquanto o filme, talvez mais marcado pela visão um tanto utópica ou fanática de um Hammond e de pendor ao entretenimento, em suma, o entretenimento enquanto de fato o objetivo de um parque, o livro é mais problematizador, digamos que um tanto dialético, porque ao mesmo tempo que trata e narra do avanço tecnológico e biotecnológico motriz da obra, também questiona tal avanço e tal projeto e em parte procura alertar, tal como os romances distópicos, os perigos de se ultrapassar determinadas fronteiras;

3 -  E em grande parte a reflexão crítica no livro surgirá por meio de Malcolm e sua teoria ancorada na teoria do caos. Caberá ao matemático a voz dissonante e o apontamento das falhas não apenas do parque, mas do pensamento científico em si. É curioso que hoje, no presente desta segunda década de século vinte e um vemos ainda mais forte o incômodo para com a ciência já presente neste personagem dos anos noventa. Há uma espécie de autocrítica da ciência e uma crítica forte aos cientistas, absortos por sua descoberta e pelo poder, isso segundo o matemático. Por ele interessantes problematizações serão postas na mesa para o debate, e isso com a complexidade que se espera de um boa obra; 

4 - Do mesmo modo, só que ampliada para além de um personagem centralizador, está a relação capital e ciência. A forma como as sociedades se relacionam com o desenvolvimento da tecnologia é trazido com certa crítica a partir da perspectiva da biotecnologia do consumidor, o que em última instância traz para a mesa também a relação do capitalismo com a ciência e a relação voraz então estabelecida. Lógico que Malcolm também será nesse aspecto a voz mais retumbante, mas com apoio do próprio narrador e com o próprio desenvolvimento dos fatos;

5 - Além disso, vale destacar ainda que enquanto ficção científica a obra adentra não apenas a dialética envolvendo a metafísica e o empirismo, mas também algo muito debatido no gênero, bastante forte especialmente em autores como Philip k. Dick. Os limites da realidade. Essa é uma leitura que talvez demande uma descida mais profunda, mas está ali em diversos momentos quando se põe em xeque a realidade não só dos dinossauros, mas do próprio parque. Além disso a problematização da distância entre os dinossauros do jurássico aos do parque e todo o ambiente novo apontam para tal debate. Soma-se a isso ainda as reflexões que grosso modo retomam a discussão que Walter Benjamin faz do camondongo Mickey enquanto simulacro e entretenimento. Com tudo isso se pretende dizer é que a obra, como podemos ver, levanta uma diversidade de questionamentos ricos em potencial de reflexão e análise;

6 - Se os aspectos científicos do romance já trazem a vantagem em relação ao filme graças à profundidade que o papel propicia a mais que as telonas, isso se amplifica com o terror. Uma narrativa destas exige sangue e vísceras, o que no cinema tem de ser mediado, e aí temos um bom elemento divisor de artes. A liberdade criativa, por mais que tenha seus filtros, na literatura é mais ampla, de modo que se temos um filme Jurassic Park cuja identidade maior é a aventura e o deslumbramento, o livro pode entregar o horror que implica trazer tais criaturas de volta à vida. Nesse sentido o livro terá mais identidade no horror que na aventura, de modo que a tensão provocada virá com maiores perigos. O cinema em relação à literatura possui muitos outros filtros de mediação, e por isso, embora similares, nesse caso, livro e filme são também bastante distintos;

7 - E no caso do livro vale destacar que a mensagem de alerta pretende-se mais vigorosa, e mostra-se assim. Há uma discussão sobre os limites dos homens e suas ciências, há-se a tentativa de dizer que em algumas questões não se deve mexer com quem está quieto. A partir de sua leitura da teoria do caos, o livro procura demonstrar que a única certeza é a incerteza, a imprevisibilidade da natureza, do ambiente, mais do que isso a imprevisibilidade da vida, esta talvez uma das mensagens mais fortes na narrativa;

8 - Mas se até aqui levantamos aspectos positivos da leitura, é chegado o momento de tratarmos do que talvez seja o mais grave dos problemas da narrativa, no caso a aparente misoginia entranhada na estrutura da narrativa. A má vontade da narrativa para com a mulheres é bastante explícita. São duas personagens femininas basicamente, Lex e Ellie, e ambas caracterizadas com certo desprezo. Lex certamente o caso mais grave, pois o autor leva muitas vezes ao leitor se voltar contra a personagem, pois ele se esmera em deixar a garota o mais irritante possível. Em determinados momentos ela é colocada sem empatia alguma, afora as sessões de "piti" em meio ao mundo que cai entre tantos perigos. De modo geral o símbolo do feminino nos salta então com muitos estereótipos por um olhar machista;

9 - Mas em suma, Jurassic Park é uma boa leitura justamente por carregar diferentes contradições e complexidades, e mesmo numa narrativa capaz de trazer "entretenimento", em suas diferentes camadas nos proporciona uma leitura carregada de reflexões e alertas, ao mesmo tempo, a despeito dos avanços de sua publicação para cá no campo da biotecnologia, sua discussão mais séria segue relevante, e está diretamente relacionada com a força e o poder esmagador do capital sobre a ciência e todas as consequências resultantes da disparidade de poder envolvidos nesta troca;

10 - Enfim, Jurassic Park é obra importante e vai além de tiranossauros ou raptores. No fundo penetra problemáticas tensionadas e agravadas por uma pós-modernidade em conflito com as referências, especialmente, uma humanidade à deriva entre o real e o ilusório, entre a ética e a moral. Ou seja, uma narrativa de grande poder de análise e compreensão dos nossos temores, e estes não são os dinossauros, mas sim tudo aquilo que não podemos controlar, entender, definir.



    



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