10 Considerações sobre Floriano encapsulado, de Frederico Feitoza ou sobre juventudes e perdas

O Blog Listas Literárias leu Floriano Encapsulado, de Frederico Feitoza publicado pela Chiado editora; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Belamente dramático e atravessado por todas as tensões e tragédias juvenis Floriano encapsulado adentra ao círculo das obras longe das grandes casas editoriais, mas de uma qualidade que supera muitos nomes figurões da nossa literatura. Em grande parte por sua trama absurdamente tão real que nos deixa incrédulos e estupefatos com o desenrolar de seus acontecimentos, beirando o insólito, tamanhas repetições de tragédias e dores, ao mesmo tempo tão realista que não podemos evitar as mensagens de alerta e melancolia evocadas pelo romance;

2 - Dito isto, parto de breves abordagens daquilo que me leva (e nunca me furto de elogios quando merecidos) a apontar a notável qualidade do romance, que sem exagero algum, assim como outras obras autopublicadas que tenho visto, bem poderia encontrar espaço nos selos mais tradicionais de nosso sistema literário. O romance consegue o que nem sempre tem sido fácil, mesmo entre autores mais calejados e famosos, a alteridade necessária a tratar do tema com um domínio e propriedade que o legitimam enormemente. Ao falar da adolescência, das juventudes, o autor o faz com aproximação aos dramas reais do nosso presente contemporâneo. Diferente de alguns romances que muitas vezes mobilizados tão somente pelas teorias ou pelas posturas ideológicas de seus autores (e lembrando que todos as têm, as ideologias), Frederico Feitoza é exitoso justamente ao fugir do panfletarismo, mas sem deixar de abordar o temas que sua ideologia pede que aborde. Quero dizer que seus personagens não pendem para constituições idealizadas, mas surgem em diferentes camadas de opacidade capazes de atravessar todos os dilemas de suas adolescências;

3 - Vale destacar que é antiga na literatura as experiências narrativas tentando compreender a adolescência, este período tão relevante e construtor de nossas identidades. Cada geração tem sua obra importante acerca do ser jovem, da juventude, Floriano encapsulado pode participar do grupo de narrativas relevantes na compreensão das juventudes do nosso presente. Isso porque a juventude aqui trazida surge em suas diversidades e nas complexidades que disso demandam, sejam de natureza identitária, das sexualidades, sociais, políticas, religiosas... há uma celebrada tentativa de construir uma narrativa que estoure as tantas bolhas por aí, bolhas estas que nossa experiência concreta demonstram ser perniciosas;

4 - Tal tentativa é expressa na diversidade de seus personagens. A partir do aparente protagonista, o encapsulado e gótico adolescente de uma classe média da burguesia do funcionalismo público federal, Floriano, um círculo de relações é estabelecido, das amizades mais íntimas do garoto, jovens burgueses tal como ele, ao grupo peculiar que acaba se formando com a soma da jovem periférica bolsista da escola e o jovem dinâmico representante da ascensão social dos pobres à classe média, mas cuja raiz familiar permanece habitando o espaço popular da comunidade de Ceilópolis. Essa aproximação que demanda outro esforço de aproximação demonstrado no título "o gótico vai à periferia", de modo que há uma discussão dos contrastes sociais entre os participantes do pequeno grupo e também doutros personagens periféricos que ampliam a discussão não tanto das desigualdades sociais, mas da indiferença acerca disso vinda das classes mais privilegiadas;

5 - Aliás, nesse sentido é bastante interessante presença do Shopping Center no romance. Por si só esta representação nos forneceria diferentes possibilidades de abordagens interpretativas das funções desta espécie de templo de uma burguesia nacional tão estéril quanto o ambiente do shopping, quase sempre trazido na narrativa pelas marcas da monotonia e da indiferença brutal para com qualquer comportamento humanista de tentar viver/conhecer/compreender o outro, o que ficará claramente demonstrado durante a tragédia radical por acontecer no romance. O alheio, o drama, as dores, nada disso importa, apenas o consumo que apaga o cheiro de sangue e promove o esquecimento da tragédia. O conspurcado, o que ficou sujo, maculado, tão logo passa a equipe da faxina retorna ao seu caráter asséptico escondendo as reminiscências da tragédia. Por essas e por outras, é um livro que distribui suas pancadas no leitor;

7 - Mas como falei de juventudes em todas as suas diversidades, há como dito importantes aspectos sociais em debate no livro, mas não apenas eles. A juventude aqui surge em sua diversidade identitária, o jovem e suposto protagonista incapaz de reconhecer-se plenamente, um gótico estranho e vítima de bullying, uma amiga entre a dúvida de ser lésbica ou não, um amigo transexual, um jovem casal hétero, pero no mucho, compõem esse interessante mosaico e cuja principal riqueza é  talvez o fato de que seus personagens não afirmam ou idealizam suas questões identitárias, eles as vivem e não sem os dilemas e as névoas da dúvida que geralmente nos perturba nesse processo de passagem da juventude para o universo adulto. Tudo isso acaba dando um clima Legião Urbana ao romance, mas com as devidas atualizações demandadas pelo tempo;

8 - Juntando tudo isto que somado a uma notável habilidade do autor em conduzir a tessitura da trama num enredo bem desenvolvido e marcado por uma estética pertinente ao propósito da obra, capaz de aprofundar os níveis de opacidade de seus personagens, no conjunto, temos uma narrativa de impacto e de bastante força, também de uma forte carga que produz seus efeitos no leitor. É um livro como se pode esperar de algo gótico, tenso, pesado em que se adentra camadas que nem sempre se desejaria entrar. A melancolia e a depressão não apenas das personagens, mas de um mundo e uma sociedade que apresenta sérios problemas "clínicos" atravessam o romance fazendo da leitura um retrato um tanto contundente destes tempos, mais do que isso, um retrato cujas pontes parecem ruídas, em especial no que diz respeito às pontes geracionais, isso, algo recorrente nas juventudes e suas literaturas de muitas gerações. Os adultos parecem continuar não compreendendo que as juventudes mudam, que cada geração terá sua juventude específica, juventudes nunca menos complexas que a geração anterior, pelo contrário, elas [as complexidades] só se intensificam. Tudo isso faz o romance uma obra digna de ser lida;

9 - Mas se até agora venho trazendo as virtudes do romance, como sempre se pede a um leitor dialético, temos de levantar também aquilo que não foi superado, certa visão que persiste. Se o autor é exitoso na tentativa de aproximação de dois mundos sociais distintos, não significa, porém, que todos os enganos e todas as visões naturalizadas e errôneas tenham sido superadas a pleno. Como disse há debate sobre depressão, bullyng, sexualidade e naturalmente, sobre drogas lícitas e ilícitas. Todavia é sintomático que o jovens e burgueses protagonistas tenham de ter ido à periferia para encontrar drogas mais pesadas que os ansiolíticos nas gavetas de seus pais. Há nessa opção talvez resquícios de uma ideia ingênua e naturalizada que a cocaína, o craque ou outra droga sejam problemas ou coisas de periferia, do traficante de fusquinha, como se fosse preciso que os jovens ricos saíssem de seus condomínios fechados para serem apresentados ao pó, como ocorre no romance. Reside aí nossa maior crítica à obra, contudo, vale destacar se há esta questão, por justiça, vale dizer que isso acaba sendo contrapesado que ao   desfecho os jovens em certa esperançosa mensagem recorram à periferia e a uma senhora estigmatizada para encontrar relativa "paz de espírito";

10 - Enfim, Floriano encapsulado é uma qualificada narrativa juvenil. Uma leitura capaz de debater as juventudes do presente em todas as suas complexidades e diversidades, isto não de maneira idealiza, pelo contrário, sem afirmações ou certezas, mas com as dúvidas e os dramas que sempre foram pilares da boa literatura.



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