10 Considerações sobre Meninos de Nápoles, de Roberto Saviano ou sobre conquistar a cidade

O Blog Listas Literárias leu Os Meninos de Nápoles - Conquistando a Cidade, de Roberto Saviano publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Numa cidade dominada por crime, corrupção e, basicamente controlada pela violência, Os Meninos de Nápoles traz um retrato contemporâneo de uma chaga persistente e aparentemente sem perspectivas de melhoras: diga-se, a lógica da barbárie que ainda enfrenta com grande força quaisquer sonhos de avanço civilizatório humano. Não deixa de ser um retrato desencantado de um mundo em que mesmo a tecnologia não nos melhora, mas acaba sendo também cooptada pelo barbarismo, pelo ódio e, mais tristemente, no abandono de qualquer escolha pela civilidade;

2 - Para compreendermos a desistência da humanização e pela civilidade da sociedade, este acompanhar da trajetória de seu protagonista, Nicolas, O'Marajá, é bastante didático. Garoto das ruas de Nápoles carrega em si o desejo de tornar-se alguém poderoso, líder de alguma paranza (equivalente a gangue, bonde, etc.). Sua concepção de poder está alicerçada em algo que deveríamos ter superado há algum tempo, mas que nossa política pelo mundo mostra que ainda vivemos na Idade Média. Para O'Marajá o que vale são as leis e os "ensinamentos" de Maquiavel, e qualquer tentativa de existência civilizada provoca-lhe monstruosa ojeriza, exemplificada na relação do garoto com o pai, um professor que procura viver dentro das normas sociais. O pai significa ao garoto tudo aquilo que em sua cabeça deve ser rechaçado, fraqueza, servidão, escravidão como os meninos da paranza geralmente dizem dos trabalhadores, das pessoas que escolhem ficar à margem da selva;

3 - Tendo na concepção equivocada de sociedade dos Meninos de Nápoles, a esta altura - no caminhar do romance desde suas primeiras páginas - impossível não traçar paralelos com o clássico nacional de Paulo Lins, Cidade de Deus, em que trata da violência nas comunidades cariocas e o nascimento de diferentes gangues criminosas. Em ambos os romances seus personagens principais abdicaram da sociedade como um projeto de civilização futura, e, embora com as características peculiares de cada obra, em ambas há a divisão mais ou menos clara da sociedade entre os fortes que disputam o poder, divididos em dois grupos antagônicos política/polícia e o crime, e no meio disso aqueles a receber todo o desdém de ambos os lados, os escravos, as marionetes do sistema, os bobos, etc. Enquanto nestas duas pontas extremas permanece o barbarismo da lei do mais forte, no meio do conflito uma sociedade oprimida de todas as partes, que caminha em silêncio enquanto o poder produz seus cadáveres;

4 - Além desta questão, a proximidade com Cidade de Deus acaba sendo ampliada pela escolha da tradução, certamente impactada pela escolha estética de Saviano de narrar o romance no dialeto "bastardo". Embora no Brasil se tenham pudores e reservas em usar o termo dialeto, a tradução capta a escolha de Saviano e utiliza da linguagem das nossas ruas, da parte marginalizada da sociedade, o que parece ampliar as similitudes entre a obra de Saviano com a de Lins, distanciadas pelo tempo, claro, e pelas diferenças entre um gueto europeu numa cidade tão antiga quanto Nápoles e as favelas cariocas que no caso de Cidade de Deus sequer trazem uma história, a constrói do princípio. Aliás, a discussão comparada destes dois romances renderá por certo bons frutos;

5 - Logicamente, embora com semelhanças, a distância de um mundo ao outro é bastante grande e poderíamos questionar se O'Marajá não teria melhores possibilidades de escolha que Pardalzinho. Filho de um professor, como dito, que dá repugnância no garoto, Nicolas desde o princípio é movido pela violência, pelo fascismo comportamental exposto não só por certa admiração a Mussolini e escancarado pelo escatológico episódio no começo do romance do embosteamento de um rival amoroso. No entanto, a violência para ele é apenas uma ferramenta para aquilo que mais lhe importa: o poder;

6 - E para chegar ao seu objetivo, O'Marajá embora conhecedor e entendedor dos meandros das ruas de Nápoles construirá seu próprio plano de conquista de poder e das ruas de Forcella. Para tanto abrirá mão de qualquer pudor pela conquista de sua própria paranza, composta por um grupo de garotos que romperão a infância para adentrar o mundo de homens cruéis e sem qualquer arrependimento por causa de valores humanos de civilidade. É como se eles, o grupo todo, num misto de visão infantilizada do mundo e seus horrores, mas também uma visão do mundo como algo abjeto e desprezível, espalharão violência, medo e morte pelas ruas;

7 - Aliás, outro ponto de debate e discussão nessa obra é justamente a linha tênue entre a visão infantil e ingênua dos perigos causado por suas escolhas e a brutalidade real da experiência que não apenas vivenciam e perpetram. Inicialmente tem-se a sensação de que no princípio para muitos daqueles garotos tudo não passa de um jogo de videogame, de produção de conteúdo pela internet, às vezes mera "diversão" mesmo. Não há por parte dos "meninos" qualquer reflexão ética, pelo contrário, descarregam seus ódios contra negros, imigrantes e trabalhadores. Mesmo que horrendo, em boa parte tudo isso parece não ser levado realmente a sério por todos - a não ser O'Marajá  - é só mesmo quando nos eventos finais a paranza acaba "batizada" é que parece-me que todos eles compreendem que tipo de mundo não apenas habitam, mas também produzem;

8 - Falando ainda nessa visão inicial em que muitos, até pela idade, parecem habitar um mundo irreal, vale destacar aquele ponto dito no início deste post a respeito da tecnologia, parte que também distancia Nápoles de Cidade de Deus. Sujeitos histórico de seu tempo, Os Meninos de Nápoles, não estão alheios a seu tempo. A violência agora é compartilhada, o sangue gera likes - e também medo -, a tecnologia é útil ao controle das coisas ao mesmo tempo que mostra a completa ruptura do contrato social de nosso tempo em que assassinatos são compartilhados, que roubos são ostentados pelas redes sociais, de modo que a ficção nas ruas de Nápoles por certo não foge muito da triste realidade urbana do mundo. Isso em pleno Século XXI, ou seja voltamos à Idade Média, mas com os benefícios do Facebook e do Youtube;

9 - Há ainda outro elemento crucial e interessante na obra de Saviano mas que está subjacente no texto. O intenso processo de aculturação. Dois elementos constituem a identidade destes garotos marginais e marginalizados por um mundo incapaz de convencer de outros caminhos. No elemento local há a relação com as ruas e com a máfia e toda sua carga histórica. É desse conhecimento que O'Marajá tira "aprendizado" para suas ações. Entretanto, uma análise atenta mostra que se a intimidade de Nápoles ensina o "como fazer", o processo de aculturamento perpetrado por uma "invasão" norte-americana lhes entrega a violência e a brutalidade da ação. É curioso, e certamente não uma escolha aleatória, como Saviano introduz a cultura norte-americana na experiência desses garotos. É a visão de mundo da cultura americana que eles procuram reproduzir, e não se trata aqui da internet e suas ferramentas digitais. Trata-se da cultura que lhes "inspira", os filmes americanos que não apenas reproduzem as falas, mas que também aprendem a matar. Sãos os quadrinhos, a televisão, toda e qualquer referência cultural que eles refletem, é uma referência norte-americana. Mesmo seus gangsteres prediletos, são produções americanas. Mais uma vez recorro a Cidade de Deus, onde tal processo de aculturamento,  se dá pelas referências norte-americanas, geralmente populares e com noções embrutecidas de mundo. O processo de aculturação apresentado por Saviano neste romance é algo que nos demanda alguma pesquisa;

10 - Enfim, Os Meninos de Nápoles não trata apenas de uma obra sobre garotos querendo entrar para a máfia. É mais profundo e emblemático que isso. Trata de uma sociedade que cada vez mais dá sinais de desistir de civilizar-se, escolha cujo retrato é o retorno - ou a permanente condição - à barbárie, ao desprezo pela vida cujo único sentido encontra na escalada pelo poder. São retratos de uma sociedade que agoniza.


          

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