10 Considerações sobre Da Leitura Literária à Produção de Textos, de Ernani Terra

No post de hoje mais uma leitura técnica aqui no Listas Literárias, desta vez a publicação Da Leitura Literária à Produção de Textos, de Ernani Terra, publicado pela editora Contexto; Confira as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:

1 - De modo geral, Da Leitura Literária à Produção de Textos segue com fidelidade a proposta presente em sua apresentação: "O livro foi escrito de forma a facilitar a leitura e a apreensão dos conteúdos. Como não é um livro para especialistas, mas para estudantes, muitos dos quais ainda não familiarizados com os conceitos dos estudos da linguagem, procurei [o autor] manter uma escrita sem rodeios e complicações, sem abrir mão do rigor conceitual". Não fica explícito, porém, a que estudante refere-se a proposta, todavia, imagino a publicação estar mais direcionada ao ensino médio, visto que grande parte dos conceitos e debates da obra, num cenário em que as coisas funcionem, devem estar apreendidos pelos estudantes já neste nível de ensino;

2 -  Para tanto, com sua linguagem simples, elaborada de acordo com a proposta da obra, o autor divide o livro em oito capítulos, além da apresentação e suas considerações finais, sendo que inicia a abordagem com "Ler e escrever: a especificidade do texto literário" partindo "do pressuposto de que o texto literário é o melhor modelo para a produção de textos, sejam eles quais forem, desde um simples relatório até a dissertação da esfera acadêmica", posição esta que poderemos discutir melhor adiante, nestas reflexões. Será neste capítulo específico que o autor tratará de alguns elementos da linguagem;

3 - No capítulo seguinte, "A produção escrita", Terra aborda que há "uma ideia circulante que afirma que basta praticar a escrita para escrever bem, [mas] claro que a exercitação contínua ajuda, mas não é suficiente" visto que "para escrever bem é preciso dominar a técnica da produção escrita". Neste capítulo o autor irá ainda tratar de distinções, por exemplo, da fala e da escrita;

4 - Nos capítulos seguintes, o autor então passa a dedicar-se a quatro populares gêneros literários, dedicando capítulos para "Crônica", "O Conto", "A Poesia" e "O Romance", sendo que notaremos uma abordagem de perspectiva muito mais linguística que literária, inclusive nos campos conceituais teóricos, o que podemos corroborar com a própria bibliografia apresentada. Isso acarreta de certo modo o tangenciamento das principais discussões teóricas da literatura, e ainda que o autor pincele da dificuldade de conceituação desta, parte para definições mais simples diante da complexidade do debate neste campo teórico, que acabam não sendo levadas em conta para a visão de literatura contida na publicação; Além disso, quando o debate está no campo literário, deparamo-nos com afirmações no mínimo polêmicas, como a de que "o romance é o mestre dos mestres" dando a entender que há predominância hierárquica de relevância entre gêneros literários, o que não encontra respaldo nos estudos literários;

5 - Nos capítulos seguintes "Tipologia textual" e "Leitura e escrita e novas tecnologias" o autor parte para descrições mais técnicas acerca das características, estruturas e estética da linguagem. No primeiro, o debate segue as discussões bastante conhecidas, enquanto no segundo, o autor abre espaço para as mudanças ocasionadas pelas novas tecnologias digitais e ferramentas de publicação. Aliás, é possível nesse aspecto que talvez a discussão pudesse ser enriquecida com o acréscimo à bibliografia, das discussões feitas por Marcuschi a respeito dos gêneros literários e internet, especialmente a observação da proximidade de certos suportes com manifestações da oralidade, como chats, e por exemplo, o Whatsapp. Essa aproximação está ausente quando Terra debate as plataformas digitais, mas acredito serem relevantes. Nessa discussão há ainda um outro elemento bastante promissor enquanto gerador de debate, que é o fato de o autor afirmar que "o blog, ao contrário do e-mail, do WhatsApp e do Messenger, configura-se num gênero textual". Não imagino que tal debate seja pacífico e consensual quanto da natureza dos blogs, de suporte ou como gênero textual. Vejamos que a existência dos blogs é bastante eclética, e como ferramenta (suporte) é utilizado para a publicação dos mais diferentes gêneros textuais, como o natural diário, outros não menos populares como a publicação de crônicas e artigos, assim como blogs apenas de contos, poesias, etc. Eis aí um bom caldo para debate;

6 - A bem da verdade, a esta altura de minhas reflexões é importante ressaltar que a publicação, embora remeta o título "da leitura literária" tem foco maior é na discussão e abordagem linguística, especialmente tendo como principal referencial teórico o dialogismo de Bahktin, e os demais estudos que o circundam como a noção de intertextualidade de Kristeva. E isso nos leva ao debate daquele pressuposto inicial enquanto "o gênero literário como melhor modelo para a produção de textos";

7 - Partindo de certo conhecimento prévio dos gêneros textuais (tipos relativamente estáveis de enunciados), de sua heterogeneidade e de sua diversidade, importa nesse caso recordar ainda que Bahktin divide-os em primários, os de natureza mais simples e também muito mais presentes na existência cotidiana, como o diálogo, o bilhete, cartas, placas, avisos, cartazes, etc e os secundários, para Bahktin, os complexos, que segundo ele "aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, cientifica, sociopolítica..." É nos gêneros secundários que estão o romance, a crônica, o conto...

8 - Pois bem, a partir daqui podemos refletir algumas questões quanto a tudo até aqui apresentado. Vejamos que a proposta é partir de textos literários para a aquisição de melhores técnicas para a produção de textos. Pergunto-me o quanto tais pontos de partida (e que de modo geral estão presentes nas principais publicações nesse sentido) não acaba estimulando mitos como o de que "escrever e difícil e para os especialistas" visto que se partirmos, mesmo numa ideia de simplicidade conceitual, de que a escrita dá-se a partir de seus gêneros secundários, estes, aliás, um tanto distantes da massa, até que ponto não se reforça tal estigma da escrita, imaginando em cada um de nós com uma boa porção de gramático capaz de conhecer os melhores mecanismos da linguagem. Como caráter de iniciação, uma abordagem dos gêneros primários não seria interessante? Obviamente são provocações e dúvidas, pois sabemos o grande temor que o processo de escrita gera nos diferentes níveis de estudantes, vide a redação ser ainda um grande terror em vestibulares e Enem. Pergunto-me ainda, o quanto partirmos da leitura literária não acaba afastando aqueles que por comodismo asseguram-se numa conhecida desculpa "não pretendo ser escritor, para quê aprender isso?". Mas são como disse, pequenos questionamentos que sempre surgem nestas leituras, especialmente se pensarmos a obra como guia mais amplo, para uma massa estudantil;

9 - Há contudo, para este leitor especialmente, um elemento incômodo e que adentra o conflito visto veladamente nas academias, que é o combate, às vezes no estilo de uma guerra fria, entre os estudos literários e os diferentes campos da linguística, este segundo para quem a literatura acaba representando basicamente um cadáver a ser dissecado de onde retiram-se elementos de estudo da linguagem sem que se leve em consideração questões importantes e caras para a literatura. Há um pouco desse espírito na obra de Terra, que esquarteja alguns romances, escarifica alguns contos e poemas para apresentar a seus leitores coordenações e subordinações, conectivos, coesão e coerência, primando assim pelo aspecto meramente linguístico do texto literário, o que não raro gera desconforto nos estudos literários. Ademais, penso, que alguns conceitos da teoria literária pudesse contribuir na constituição conceitual da obra, que ainda que estejam presentes, surgem um tanto tangenciados;

10 - Enfim, embora o autor tenha  optado "por trabalhar com o discurso literário" por essa "poder ser considerada um tipo de escrita modelar" e por "ser um excelente parâmetro para a produção de textos de quaisquer gêneros", ao ser voltada a estudantes, talvez em discussões principiantes, não sei o quanto isso pode afastá-los ou aproximá-los. Além disso, vale ressaltar a natureza linguística destas discussões, o que, no caso de estudantes com conhecimentos mais profundos e que o procurem pelo "da leitura literária" possam talvez deparar-se com alguns dos conflitos aqui apresentados, especialmente aqueles que rumam aos estudos literários. Todavia, importa aqui a própria proposta da obra e nisso ela satisfaz, visto que trata-se de uma leitura básica que permite a seu leitor melhor compreensão das estruturas e das formas narrativas.



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