10 Considerações sobre O Pássaro do Bom Senhor, de James McBride, mas te conto isso num minuto

O Blog Listas Literárias leu O Pássaro do Bom Senhor, de James McBride publicado pela editora Betrand Brasil; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - O Pássaro do Bom Senhor é uma narrativa eletrizante e que produz um olhar interessante e único a respeito de um dos momentos históricos mais importantes dos Estados Unidos precedendo a guerra civil e enraizando a luta pela libertação dos escravos de forma irreversível no país;

2 - Publicado nos Estados Unidos em 2013 (vencedor do National Book Award daquele ano) e lançado aqui no Brasil no final de 2015 o livro busca tratar a sua maneira e com seu olhar a figura de John Brown, um radical e controverso líder abolicionista que lutou com armas contra a escravidão no país e realizou um fato divisor de águas para a campanha ao invadir e tomar um depósito de armas e munição em Harpers Ferry, evento que para muitos historiadores colaborou fortemente para a guerra civil que veio depois;

3 - E para contar essa história o livro faz uso de uma técnica bastante inteligente e instigante que é a inserção de um personagem polêmico e palpável que é posto em cena para narrar e acompanhar a vida do velho Brown nos anos que antecederam à invasão do depósito de armas. Contudo, Henry "Cebola" mais do que garantir essa apresentação narrativa, constituir-se-á como uma peça deveras interessante história, por toda a complexidade que o envolve e pelas características que torna-no único, é certamente um dos mais covardes personagens da literatura, mas de espantosa capacidade para contar uma boa narrativa;

4 - E o interessante é que a narrativa em primeira pessoa conta com a voz de Cebola que além de ser dissimulada, está cheias de nuances. Além disso, sua inserção funciona perfeitamente bem, de modo que este narrador e personagem do romance habite a realidade histórica de tal modo que possa contá-la (obviamente com os descontos provocados por seu olhar imparcial - e explícitos) e criar suas suposições e novas possibilidades, ao mesmo tempo que não altera nada de significativo que traga grande prejuízos ao contexto histórico. Aliás, nesse sentido é bastante útil a covardia de Cebola, bem como os momentos que o personagem afasta-se da figura histórica construindo sua própria essência e jornada;

5 - Além dessa certa dissimulação, a voz de Cebola é coberta por uma fina ironia, porém capaz de manter-se em grande parte alheia a julgamentos sobre si mesma ou seus atos. Cebola em momento algum questiona-se pelo fato de ser menino disfarçado de menina, ou martiriza-se quando de suas falhas para com o grupo, pois está em sua natureza o entranhamento da sobrevivência, e para tanto, Cebola muitas vezes não tem dó alguma de ferrar com os outros ou com o Velho Brown, desde que seu rabo fique fora da reta. Todavia, até mesmo o fato de a história ser rememorada por uma velho com mais de cem anos deve ser levada em conta pelo leitor;

6 - Além disso, para retomar as nuances dessa voz narrativa, um detalhe interessante a que o leitor deve ficar atento é sobre como muitas vezes o que Cebola diz é contradito pelas ações. Isso é ainda mais perceptível sobre os muitos modos com os quais o narrador observou John Brown deixando para que a voz replicasse as inconsistências do homem mostrando-o como um tanto alucinado e atrapalhado, enquanto as ações descritas vão deixando transparecer o homem cheio de contatos, planejamento e acima de tudo portador de um ideal e de uma capacidade para realizar sua luta contra a escravidão. Se por um lado o narrador do livro revela um Brown dependente da sorte, até meio lunático, por outro lado, no campo da ação, talvez a obra revele aquilo que desejava desde sua gênese: reforçar e recontar a luta deste abolicionista de tal modo que o leitor possa inferir a grande capacidade e inteligência do homem. Neste sentido, temos um livro que dialoga diretamente com as controvérsias históricas e é capaz de apresentar os dois lados de um mesmo homem, no entanto, o olhar prejudicial a Brown é o da pouco confiável Cebola, enquanto o leitor poderá construir um olhar totalmente diferente sobre John Brown, e em geral, positivo;

7 - Aliás, na obra vários momentos são narrados de modo a revelar a astúcia de Brown que vai além de sua fé. Seja quando das narrações em batalha em que toda a argúcia para o combate é descrita, seja pelo modo astucioso de lidar com seus homens e também observar apenas aquilo que deseja ver, ou então, quando ao final da obra temos uma Cebola estupefata diante de um capitão que sempre soube de "seu segredo", mas que a compreendera e respeitara sua decisão;

8 - Outro detalhe interessante na constituição do livro é a forma como ela apresenta o nascimento da grande luta em prol da liberdade dos negros americanos. James McBride recria um cenário de divergências, medo, abstenções, entre outras coisas que faziam aquela luta ainda muito inicial e sem a fibra necessária para a constituição da guerra, pois até então os negros, mesmo os que lutavam, talvez não tivessem o vislumbre de uma real liberdade. Nesse sentido, e certamente uma das coisas que o livro também tenta mostrar é que foram os atos de John Brown que massificaram tal luta e inciaram um processo que já não poderia mais retroceder;

9 - Com isso, realizando essa releitura histórica o livro é uma obra com todo um contexto social e histórico de extrema relevância, bem como uma obra em que o chumbo grosso corre solto pelas terras americanas no estilo "oeste selvagem" que tanto caracteriza a formação americana;

10 - Enfim, O Pássaro do Bom Senhor é uma leitura edificante e esplêndida sobre a luta pela liberdade (ainda que precise edificar a guerra) e que nos arrebata pela técnica, por seus personagens e acima de tudo para forma com que é feita essa releitura, cheia de intenções e com filiação partidária, contudo uma obra necessária para ampliar nossa compreensão sobre a luta pela liberdade e os entraves no caminho de homens cheios de ideal e perseverança cujo caminho mais óbvio é sempre a forca.



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