Relicário, por Kamila da Rosa Teixeira

No semestre letivo de 2021/2, a disciplina de Narrativa Brasileira Contemporânea, ministrada pelo Professor Doutor João Luís Pereira Ourique e ofertada pela Universidade Federal de Pelotas, possibilitou que os discentes produzissem um texto literário inspirado em uma das sete obras escolhidas para serem trabalhadas durante as aulas. Um dos livros selecionados foi Vestígios, de Ana Maria Machado.

Nesta obra lançada em 2021, a autora traz 11 contos independentes que versam sobre o mesmo tema: relações familiares. Tem linguagem clara, com narrativas líricas e profundas; personagens ordinários em situações comuns; as histórias são, em sua maioria, de fácil identificação para os leitores.

Enquanto lia o livro, senti a necessidade de versar também sobre uma relação familiar. “Relicário”, que será apresentado a seguir, foi inspirado no conto “Tratantes” (MACHADO, p. 57-64, 2021) e apresenta a relação entre neta e avó, interpelada pela passagem de tempo e pela mistura de sentimentos – dor, euforia, admiração, saudade – da personagem.

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RELICÁRIO

Acordou cedo, não era muito comum. Domingo de manhã, 7h18. Rolou mais um pouco na cama, tentando prolongar o descanso, mas não obteve sucesso nenhum. Logo levantou, já que tinha almoço marcado na casa da mãe do padrasto, com a família “emprestada”. No caminho ao banheiro, encontrou sua mãe. Um frio e forçoso “feliz dia das mães” lhe disse. Por culpa, adiou o banho por 15 minutos e foi tomar café com ela. Como de costume, discutiram. 

Não lhe saiu da cabeça a hora em que tinha acordado. Depois de tanto pensar, chegou a conclusão de que tinha dormido muito cedo na noite anterior, por isso despertou igualmente cedo e deixou isso pra lá. Enquanto se arrumava, vestiu o relicário que tinha presenteado a avó no dia das mães há alguns anos atrás. Foi arrumar o cabelo. A mãe entrou no quarto. Notou a joia em seu pescoço, passou a mão num gesto de carinho e saiu. 

Naquele momento, ficou claro que o seu despertar fora de hora estava ligado diretamente ao primeiro dia das mães sem a avó ao lado. Naquele momento, uma enchurrada de memórias passou na sua cabeça, memórias que ela nem lembrava que tinha. Naquele momento, enquanto se olhava no espelho, sua imagem ficava cada vez mais borrada pela enchurrada que saia de seus olhos. 

Elas tinham tantas conversas. O passatempo preferido da avó era lhe contar as histórias que viveram juntas quando era pequenina. Como aquela de quando tinha uns 3 anos e bateu em sua porta com um potinho cheio de batatas fritas para dar-lhe de janta. Também tinha uma de que ela brincava de ninar os sacos de arroz nas prateleiras do mercado, onde ela passava as tardes com a avó enquanto o pai e a mãe trabalhavam. “Alô, pai? Que horas tu vem? A vó já cansou de mim.” A menina dizia pelo telefone, depois de muito insistir até conseguir uma ligação. As risadas rolavam soltas, ela não entendia. 

É que a Vone nunca cansaria dela. Nunca cansou. O tempo que passavam juntas sempre parecia curto. Uma vez ela deixou escapar que preferia que a menina nem fosse à escola, pra ficar em casa fazendo companhia. E era uma companhia boa. Pras duas, que fique claro. A menina, que hoje já não é tão menina assim, aprendeu um bocado nos finais de semana na casa da avó. 

Algumas coisas ela só entendeu bem depois de muito tempo. Como os três bebês que deixaram a barriga da avó antes do tempo. Um deles era uma menina. A filha que nunca tive. 

Era assim que ela chamava a menina. E implorava pra que ela não contasse pra nenhuma das outras três netas mais novas. Esse era só um dos segredos que elas guardavam uma da outra. 

Lavou o rosto, terminou de se arrumar. Chegou no almoço de família. Mas não estava no clima de festa. Pegou seu livro e foi pro jardim. Quando sentou no gramado pra começar a ler, olhou pra roseira e mais uma memória apareceu. “A Ana tinha 17 anos. Nunca vou esquecer da imagem dela vindo com uma rosa vermelha nas mãos pra me entregar de presente. Foi nosso primeiro dia das mães juntas.” Ano após ano, sempre que a menina ouvia a avó contar essa história, imaginava a menina doce que a mãe devia ser. Ela viu poucas vezes essa versão de quem a avó falava com os olhos brilhando, sempre quis conhecê-la melhor. 

A menina preferia o mundo narrado pela avó. Quando caminhavam pela cidade, então, eram estórias umas mais interessantes que as outras. Desde um primo do tio do irmão do avô que tinha caído de bicicleta na rua do lado, até um bebê engasgado que ela salvou na casa da esquina. A avó era um espelho que ela queria seguir. E a menina era o orgulho da avó. 

A família inteira sempre soube que elas eram almas gêmeas. E a família inteira quis proteger a menina do susto que ela levaria com a notícia. “A Vone teve um AVC?” Claro que não, ela saberia se a avó tivesse tido um AVC. “Acho que teve. Pergunta pro teu pai.” O pai dela não esconderia isso. Foi o que ela pensou.

A menina levou tempo para assimilar que a avó não cuidaria mais da horta. Não cuidaria mais do pé de Ipê amarelo que elas plantaram na frente da casa. Não caminharia com ela pela cidade contando estórias da vida. Não insistiria por minutos a fio pra ela comer. 

Dali pra frente, o assunto mais recorrente delas era o sonho da avó de voltar a andar. A dependência era o pesadelo dela. E ela dependia de todos pra tudo. Assistir a TV; tomar café; ir ao banheiro; escovar os dentes; tomar água; pentear o cabelo. A avó não podia nem mais pegar o próprio celular pra ligar pra menina dela, que estava há algum tempo morando longe pra estudar na faculdade. Elas costumavam se falar todos os dias por alguns minutos, numas ligações corriqueiras. “Hoje foi cansativo, vó. Saí cedo de casa, o ônibus tava cheio. Na volta também...” “Mas tu almoçasse?” “Sim, no restaurante da faculdade.” “Não é muito caro?” “É só dois reais.” “E tem comida que chegue?”. 

A dependência era o pesadelo dela. As ligações diárias passaram a ser semanais. “Teu pai não me deixa te ligar. E eu tô com saudade.” A menina também sentia saudade. E sentia 

saudade da avó como era antes. E sabia que não tinha como tê-la de volta. E sentia que ficava cada vez mais difícil. De longe ela percebia. O pai também contava. 

O almoço ficou pronto. Churrasco, saladas cruas, aipim cozido. Todos na mesa conversando, rindo – e tinha até alguns cantarolando. A menina preferiu comer sozinha, lá na sala. E ali ela lembrou do segundo domingo de maio do ano passado, quando ela estava almoçando na casa da avó. 

A avó ainda ficava só na cama, mas toda feliz usava o relicário que ela tinha ganhado da menina há alguns anos atrás. Ela já estava cansada, todo mundo a volta dela sentia. Ela estava cansada de muita coisa. A mente dela já não era mais a mesma. E, mesmo com a mente anuviada, parecia que a menina era o seu raio de sol. Passou aquele domingo inteiro perguntando onde a neta estava, se tinha comido o suficiente, se já tinha ido embora, se precisava de alguma coisa. 

É que a Vone nunca cansaria dela. Nunca cansou.

A menina concluiu então que o dia das mães nunca mais seria igual. As comidas do segundo domingo de maio de cada ano dali em diante não teriam o mesmo gosto. Afinal, nenhuma água seria suficiente para tirar o gosto agridoce das lembranças de seu paladar pra degustar o que quer que fosse servido – onde quer que estivesse. 

Ela sempre odiou agridoces.

Ela sempre amou demais a avó.

Ela sempre odiou despedidas.

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