Almoço em família, por Caroline Blank Mesquita

Para essa primeira avaliação decidi escrever um conto tendo como inspiração a temática dos contos da obra Anos de Chumbo de Chico Buarque. Esse conto busca, então, refletir sobre a presença do saudosismo em relação a Ditadura Militar no Brasil nos dias atuais, assim como sobre que pensamentos retrógrados nossa sociedade vem perpetuando desde aquela época e como isso afeta as relações familiares.

***

Almoço em família


Hoje é domingo, e eu poderia dormir até mais tarde, mas minha mãe me acordou cedo, ignorando meus pedidos para me deixar ficar em casa. É a primeira vez que vamos a casa do vô desde o ocorrido do ano passado. Eu fiquei surpresa com o convite dele. Ele enviou uma carta, porque odeia a maior parte de toda tecnologia, nela continham poucas palavras e nenhuma delas era “desculpa”, mas minha mãe nem ligou para isso, ela só quer que fique tudo bem entre a família de novo, como se isso fosse possível.

Sempre fomos só eu e minha mãe, eu sou o que podemos chamar de uma produção independente dela. Eu sou a filha tão sonhada depois de anos de fertilizações fracassadas, mas eu sou também uma decepção, não sou sua princesinha e sou a menina que fez ela ficar todo esse tempo longe dos encontros de família. 

Minha mãe é o que podemos chamar de pessoa neutra, ela tem muita dificuldade de se posicionar e está sempre tentando apaziguar as coisas, mesmo que isso fira a ela própria. Minha mãe tem um mantra: “família é família, independentemente de qualquer coisa”.

E quem sou eu, então?

Eu sou a Bela. E não, isso não é um apelido, minha mãe me registrou assim mesmo - eu disse que ela queria uma princesa. Eu sou uma jovem adulta estudante de Cinema, acho que é por isso que gosto tanto de escrever, quero ser roteirista um dia. Escrever é minha cura, principalmente quando minha alma doe. E eu sou lésbica, eu não considero isso um fato muito importante sobre mim, mas para o mundo inteiro é essa palavra que me define, mais do que qualquer coisa. É esse fato que me torna alguém estranho aos olhos da maioria das pessoas que conheço.

A minha família já foi maior, mas com o tempo a mesa na casa do meu avô ficava cada vez mais vazia. Minhas tias e tios, meus primos de primeiro e segundo grau, a cada mês vinham menos pessoas, porque a cada vez alguém chegava no seu limite com o vô, a cada ano alguém decidia que aquela casa não era mais parte da sua própria casa. Quase toda vez alguém era ofendido e depois recebia uma carta - que não era de desculpas. Alguns voltavam anos depois, afinal família é família, outros nunca mais voltavam.

Quando eu era pequena, eu adorava ir na casa dos meus avós, minha vó sempre foi um doce de pessoa e fazia as melhores guloseimas, e meu vô sempre foi um senhor sério, mas era carinhoso com os netos. Ele sempre contava histórias da sua infância e adolescência, de como era bom naquele tempo. Ele sempre contava como era seguro brincar na rua, porque nossos governantes cuidavam das pessoas, caçavam todos os bandidos e faziam eles se arrependerem por perturbar a ordem e a tranquilidade dos cidadãos de bem. Ele também dizia que naquela época não existiam pessoas desajustadas, querendo contrariar a natureza. Só existiam homens e mulheres de verdade. Eu achava engraçado quando ele dizia isso e ficava imaginando o que seria uma mulher de mentira.

E tudo isso era possível, porque em 1964 aconteceu uma revolução para devolver a segurança para o país. Todas essas estórias foram perdendo a graça quando eu descobri quem eram os verdadeiros bandidos, o que foi essa revolução e quem eram os desajustados - eu era uma desajustada.

Com o tempo eu fui me tornando uma adolescente irritante, como dizia minha mãe. Eu diria: politizada. Sempre que podia, eu afrontava meu vô, questionando suas estórias com fatos e contando a verdade para meus primos menores. Ele sempre me respondia com um ar de superioridade e me chamava de menina rebelde. Não demorava muito para minha mãe aparecer me puxando pelo braço até um canto da casa para me repreender, dizendo que eu devia respeitar os mais velhos e manter a paz entre a família.

Enquanto ela dizia isso, eu só conseguia pensar se ela não reparava que a mesa ficava cada vez mais vazia e que a culpada por isso não era eu.

Esses confrontos aconteceram várias vezes, quase toda vez que íamos até a casa dele, ou seja, quase todo mês, mas foi no verão passado que ocorreu o maior dos meus afrontes e nunca poderia imaginar que terminaria da forma que terminou.

Eu sempre pensei em como contar para a minha família sobre minha orientação sexual, obviamente que minha mãe já sabia, ou pelo menos desconfiava, pois nunca cheguei a ter essa conversa com ela. Depois um tempo pensando, achei que poderia ser vantajoso pegá-los de surpresa e se ficassem sem reação, eu não correria o risco de ser atacada, já que meus familiares não são o que poderíamos chamar de “mente aberta”.

Além disso, confesso que imaginei que a reação de meu avô seria, no mínimo, curiosa e talvez até engraçada, mas passou longe disso. E foi nesse dia que percebi que ele não era apenas um velho saudosista indefeso.

Naquela manhã de domingo, avisei minha mãe que iria levar uma amiga comigo. Ela desconfiou onde isso poderia terminar, pois a conhecia e sabia que não era uma simples amizade, mas acho que não imaginou que eu teria coragem de fazer o que fiz, então concordou. Partimos as três para aquele fatídico almoço de família. Meu avô parecia alegre nesse dia, nos cumprimentou e elogiou, de forma gentil, a beleza da minha amiga.

Depois de comer, como de costume, fomos todos até a sala conversar. Depois de um tempo refletindo, tomei coragem e me levantei e pegando da mão dela a trouxe comigo. Ali, paradas no meio da sala, diante do rosto de interrogação de todos, anunciei que aquela era, na verdade, minha namorada e depois a beijei rapidamente os lábios. Ela sorriu para mim, sem imaginar o que viria a seguir. Todos ficaram calados, sentados sem proferir uma palavra, até que meu avô se levantou lentamente, rompendo o silêncio com o barulho que o sofá fez com seu movimento, e se retirou até o seu quarto. Pensei que minha ideia tinha sido ótima então, pois melhor ser ignorada do que atacada, mas não demorou muito para minha satisfação desaparecer. Meu avô voltou do quarto com um 38 em mãos – eu nem sabia que ele tinha uma arma – apontando-o para nós duas, ele gritava para tirarmos os pés de sua “santa casa”, se não ele nos mandaria direto para o inferno, onde, segundo ele, era o lugar de pessoas como nós. Todos os outros permaneciam no mesmo estado de inércia de antes, enquanto nós corríamos porta à fora. Do pátio ainda pude ouvi-lo culpar minha mãe, pois uma família desajustada sem um pai para impor respeito, só poderia dar nisso.

Minha mãe saiu de dentro da casa em seguida, sem dizer uma palavra, se desvencilhando delicadamente da mão de minha vó, que tentava segurá-la. Saímos as três como fugitivas. De dentro do carro pude ver olhar apreensivo de minha vózinha, como se fosse atrás de nós, mas ela jamais seria capaz de ir contra meu avô, assim como nenhuma das pessoas paradas ali iriam.

Já faz um ano desde que saímos expulsas daquela casa, meu namoro terminou pouco tempo depois disso. Confesso que não esperava uma carta de meu vô tão cedo, acho que não esperava uma carta dele nunca mais, e talvez romper essa relação fosse um alívio para mim, mas seria sufocante para minha mãe. E é por ela que estou aqui novamente, na casa onde quase levei um tiro olhando de frente o homem que acredita que meu lugar é no inferno, ao mesmo tempo que me recebe com um abraço afetuoso e diz que me perdoa, afinal, para ele, o veredito de quem é culpado e quem é inocente já está feito desde o princípio.

Sentada no canto da sala, nesse sofá antigo de couro gelado que faz um barulho irritante a cada mínimo movimento, eu escrevo essas palavras. Enquanto minha mãe ajuda a vó com a louça e meu vô dorme tranquilamente escorado na sua poltrona. Tudo é silêncio e diferente da última vez, não há mais ninguém além dos citados aqui. Muita coisa deve ter acontecido nesse ano que passou, talvez mais cartas sejam enviadas para trazer todos de volta, talvez alguns nunca mais voltem, não há como saber. Eu mesma estou aqui agora me perguntando porque voltei aqui. Precisamos mesmo suportar tudo em nome de manter a família unida?

Me tornei a pessoa que vai de visita na casa de seu agressor em nome de um laço de sangue que nos une, ou melhor, me amarra e me sufoca. Acho que me tornei o que mais temia: uma pessoa neutra, como a minha mãe, ferindo a minha própria existência.

Postar um comentário