O Blog Listas Literárias leu Dom Quixote (Volumes 1 e 2), de Miguel de Cervantes publicado pelo selo Penguin Companhia. Neste post confira as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre este livro que certamente é um dos maiores clássicos da literatura universal:
1 - Via de regra quando de resenhas de clássicos cuja leitura deu-se tardiamente prefiro comunicá-la. Inicialmente pode-se pensar ser esta uma leitura compartilhada pela maioria dos leitores, visto que é obra não apenas clássicas, mas lembradas em livros escolares. A realidade, porém, é outra, e nem sempre temos contato com esse clássico ainda na juventude estudantil. Esses desencontros e encontros tardios continuarão a acontecer, contudo, o mais dramático, sem dúvida alguma, seria passar uma vida sem ler em algum momento Dom Quixote, pois essa é uma narrativa, embora deteste a palavra, realmente atemporal. Todavia, nada tem de mágico Cervantes, isto está mais associado ao fato que nós humanos mudamos muito pouco, mesmo com a passagem dos séculos e a construção de artefatos fantásticos como nossa realidade presente. Mas lá no fundo temos nossos velhos sentimentos e comportamentos, no máximo, vez ou outra pincelados com ares "modernos". Além desta lembrança, outra inevitável é o quão difícil, quando se discute ou aborda esses clássicos, é trazer algo novo ou contribuições sobre a obra que já não tenham sido ditas. Esse é um esforço que sempre tentamos aqui no blog, de modo que neste poste procuramos mais associar a leitura com nosso presente do que repetir opiniões e elementos já tão enraizados na monstruosa fortuna crítica deste livro. Feitas essas ressalvas, partamos à nossa leitura;
2 - Mas antes disso e considerando que, como nosso próprio exemplo, ainda há e haverão leitores que não conhecem Dom Quixote, cuja primeira parte foi publicada em 1605 e desde então considerado um marco no romance moderno, a narrativa do escritor espanhol Miguel de Cervantes nos apresenta a fantástica jornada do fidalgo que vem a autonomear-se Quixote de La Mancha, embebido pelos livros de cavalaria de que é leitor, por sua conta e loucura decide sair ao mundo em busca de aventuras em sua missão de resgatar a ordem dos cavaleiros andantes com seus valores utópicos de velar pelos fracos e oprimidos. Logicamente o caráter farsesco e paródico da narrativa nos entregam um personagem icônico já que suas aventuras atravessam os limites de qualquer realidade de modo que moinhos viram gigantes e qualquer rebanho de ovelhas pode se tornar um vasto e perigoso exército; em suma, "enloquecido" pelos livros, Dom Quixote enxerga o mundo sob suas próprias lentes. Não esqueçamos, claro, que "loucura" partilhada com seu fiel e picaresco escudeiro, Sancho Pança, figura cômica sempre "pronta" para pagar o pato das confusões de seu amo;
3 - Aliás, vale destacar que nesta resenha trazemos nossa avaliação das duas partes do romance, de modo que tivemos maior gosto pela primeira e responsável pelo sucesso da obra. Os dois volumes parecem-nos um tanto distintos, a bem da verdade, o segundo ainda que não completamente, alça o escudeiro Sancho Pança a um espaço e importância maiores, isso com justiça, claro. Isso, aliás, tem relação com nosso subtítulo ao post usando um adágio popular, adágios tão caros, principalmente à cultura popular de Pança, mas também ao próprio Cavaleiro da Triste Figura que não os deixava de usar. Nossa escolha para o título, esperamos adequação tal qual as máximas pancianas, é justamente porque não só aos personagens internos da narrativa permanece certa dúvida quanto a dubiedade de Quixote, ora sábio, ora louco varrido, o mesmo valendo para seu escudeiro. Se um louco ou um sábio filósofo era o questionamento do círculo de amigos do fidalgo, os leitores com o tempo o tomam mais como o velhinho que cedeu à loucura graças aos livros, mas ainda assim, os próprios leitores trazem à baila as utopias de quixote, de modo que a dúvida persiste e não é resolvida com o aparente desfecho da segunda parte e a lucidez na partida do fidalgo. Pelo contrário, sua morte e seus preparativos mais jogam dúvidas que certezas, seria ele mesmo um louco ou um sábio que optou ser louco por um tempo? Por isso como um Sanço Pança recorremos aos ditados populares, e de sábio e louco todo mundo tem um pouco, e Dom Quixote e Sanço cumpriam ambos os papéis, ainda que, em momentos capitais, estavam mais para sábios que loucos;
4 - Dito isto, é a partir de agora que esta lista-resenha torna-se uma lista que em grande medida apresenta propostas à pergunta, afinal, por que lermos Dom Quixote ainda hoje, passados quase cinco séculos? Primeiro que, como já o dissemos, nesses quase quinhentos anos, nós, humanos, intimamente não mudamos muito, a despeito de como o mundo mudou e nós o mudamos nos últimos séculos. Nós, contudos, ainda somos os mesmos e as posturas humanas, em grande parte tristemente, assemelham-se um bocado às posturas humanas na transição do medievo para a era moderna momento em que vem à luz este bravio romance;
5 - Nesse sentido, talvez uma das coisas mais interessantes que senti (e certamente só o senti agora porque não li-o uns vinte anos atrás) é o modo como a leitura de Dom Quixote ainda é capaz de explicar o contexto geopolítico de nosso presente. As raízes das cisões que por ora colocam o mundo em novas possibilidades de confrontos ainda mais amplos do que as guerras que se travam, enquanto o cavaleiro andante sai em busca de suas aventuras deixando a Mancha e cruzando diferentes regiões da Espanha, mesmo nesse pequeno quadro o mapa fragmentado e acima de tudo as fragmentações culturais da Europa com seus fluxos e contrafluxos migratórios estão presentes, tal como a ascensão do cristianismo e a batalha travada culturalmente contra islâmicos, os mouros nesse contexto. Esse inimigo externo, aliás, tão presente também na cultura e tradição dos contos brasileiros que nos chegaram de Portugal. A geografia política em Dom Quixote dá contornos realistas à narrativa, inclusive com as fábulas internas que por sua veze adentram nesses assuntos e apresentam aos leitores de hoje as raízes do passado que teimam em persistir no Ocidente;
6 - Mas deixando um pouco tais aspectos, precisamos aqui abrir espaço para a estética da linguagem da obra. Dom Quixote é um leitor que acaba sendo envolvido tal modo pela leitura de seus romances de cavalaria, que como um cosplay dos tempos primevos, prefere viver a cópia, rasgando cortina de sua própria realidade. Aí já temos algo relevante das grandes obras, todo romance canônico e único é em grande medida pastiche e paródia de tudo que leu e consumiu culturalmente seu autor. O romance troça em grande medida das narrativas de cavalaria e a partir delas constrói algo totalmente novo. Muitos romancistas contemporâneos precisariam compreender isso, as grandes obras não nascem daquelas que seguem os ritos e ditos do que vem sendo feito, mas justamente daquelas que diríamos em palavras contemporâneas são disruptivas. Se algo em comum partilham as principais obras do cânone universal é o fato de que são todas elas em maior ou menor medida disruptivas com o que se tem feito. Todas elas conspurcam a linguagem, jogam com a polifonia, com o dialogismo e com o intertexto, e Cervantes (assim como Goethe e outros), já o faziam antes de Bahktin nomear o que estes faziam. Além disso, Cervantes sequer é oficialmente o autor de Dom Quixote, já que as categorias narrativas aqui são um tanto interessantes, pois temos um narrador que é na verdade um tradutor do que conta o autor ("historiador") Cide Hamete Benengeli, árabe muçulmano autor das façanhas de Quixote quase em em tempo real (aliás, na segunda parte temos não só a versão de Benengeli como outras apócrifas e de desagrado do próprio Quixote). Só pela estética e pelas escolhas teóricas de Cervantes poderíamos escrever tanto, que paramos por aqui que não cabe num post de um blog;
7 - Outra coisa relevante que temos que tratar sobre a narrativa é o fato que como toda e qualquer boa narrativa é a presença das fábulas in fábulas. Talvez mais rico que as próprias aventuras de Dom Quixote sejam as estórias que estão inclusas dentro de suas estórias. É por meio delas que o aspecto fabular e da literatura enquanto forma de compartilhar aprendizagens se apresenta. Vejamos Dorotéia ou da infanta Micomicoma? A estória do Curioso Impertinente, então, um primor e cada fábula dentro da narrativa um objeto a se olhar por si só.
8 - Lembradas essas questões estéticas, voltemos aqui a um dos elementos interessantes para as leituras contemporâneas que lá estão: a relação do popular e do poder. Dom Quixote é um fidalgo, membro nobre da sociedade, afinal um fidalgo com recursos, aliás, não à toa pode permitir-se a tais enredos. Mas aqui para além da loucura temos um fidalgo que de toda forma não age como seus próceres, há nele certo desprendimento e certos valores que não compactuam com sua classe, não esqueçamos que trata-se de um utópico fidalgo que por causas de suas leituras busca por justiça social. A ele se une Sancho, um verdadeiro pícaro cujo signo é da resistência. Sancho representa o povo em todas as suas idiossíncrasias, a falta de cultura, o aspecto por vezes tonto e ignorante, glutão, mas que por trás da superfície traz uma representação da insistência dos mais fracos diante dos poderosos e quiçá com uma sabedoria improvável, enfim, Sancho acima de tudo é resistência. Embebido pelo sonho de ser governador de uma ilha, promessa de seu amo, ao que alcança ainda que na patifaria da Ilha Logratária, embuste dos duques que os recebem e riem das loucuras do bom Sancho e Quixote, não por seus atos nos curtos dias que governou, é justamente na ação de abdicar das relações de poder, de preferir ser escudeiro que governador que ele traveste-se da figura do homem que nada quer e com isso mostra-se de uma força e sabedoria incomuns. Muito falamos de Dom Quixote, mas olhares acurados a Sancho poderiam ir além da superfície de sua metralhadora de versos e ditados populares e assim teríamos teses e mais teses sobre este peculiar e singular coadjuvante. Nem mesmo quando Sancho nos apresenta pérolas de um coach moderno, não deixa de apresentar algum fundo de importância;
9 - Indo para o desfecho desse post, diante o que até então expomos, pensamos que mais relevante que a ambiguidade entre a lucidez ou loucura quixotesca, está na verdade, o fato que a despeito de vivê-las com suas lentes o incontestável é que as duas saídas de Dom Quixote em sua jornada de cavaleiro andante resultaram em experiências muito vívidas. Se os moinhos eram de ventos ou se sua senhora e musa Dulcinéia e inimigos meras ilusões, se ainda permanecem os mistérios de Montesinos, por outro lado, ele de fato vivenciou venturas e desventuras, conheceu das mais diversas gentes e embrenhou-se e interligou sua história com as mais diversas estórias ao cabo que de fato exerceu a cavalaria andante, um giramundo utópico com sonhos de liberdade e justiça, e enquanto uns ironizavam e faziam chistes com a loucura de fidalgo, ele e Pança viviam a experiência;
10 - Enfim, dizer que em algum momento precisa-se ler Dom Quixote é chover no molhado, mais ainda assim o dizemos. Uma narrativa fantástica e capaz de conversar com nosso tempo e com nosso eu neste nosso tempo. Um dos personagens mais fantásticos que as narrativas nos legaram e que se observares bem ao teu lado em tua cidade não é tão raro assim encontrarmos quixotes que entre a loucura e a sabedoria tornam-se imortais porque são capazes de seja por um segundo ou por algum tempo maior olharmos as coisas por lentes distintas das que nos habituamos. Não é que a leitura mude o homem, ela mostra-o de que é possível olhar as coisas por outras lentes, daí o perigo dos livros como vemos nos expurgos do Padre e Sansão Carrasco na biblioteca do fidalgo. Que obra, leitores, que obra! Vale dizer ainda, antes de encerrar que o box com os dois volumes da Penguin traz textos importantes do tradutor Ernani Ssó assim como um vasto conjunto de notas que ampliam a leitura do romance de Cervantes.


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