O Blog Listas Literárias leu Grito, de Godofredo Oliveira Neto publicado pela editora Record. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou por que todo cuidado com a vovó, confira:
1 - Antes de mais nada, precisamos dizer que a leitura de Grito deu-se com uma voracidade incrível, contrariando nossa expectativa inicial de que seria uma leitura cadenciada. Por alguma razão, iniciada a leitura, ela não para, o que, inclusive, pode trazer armadilhas, já que a narrativa traz em si um mosaico de influências e citações que por vezes a leitura voraz pode fazer-nos perder esta ou aquela referência. Entretanto, não houve jeito, leitura em poucas horas, um feito para uma narrativa que mistura diferentes linguagens, entre elas, o texto dramático inserido à prosa, o que por si só, sempre demanda mais atenção;
2 - Dito isso, podemos dizer que a narrativa dá-se em diferentes camadas e por meio de uma linguagem que penetra diferentes dimensões. Grosso modo, o texto trata da relação de uma senhora octagenária com um jovem ator com o qual mantém uma amizade um tanto curiosa. Dona Eugênia, ela própria, uma miríade de textos de terceiros que a constituíram ao longo da carreira. Ele, um jovem ator negro, um novo Fausto no vasto tecido fáustico de nossa literatura nacional, sedutor em sua amizade com a senhora, contatos marcados por atuações no permanente fingir que é a existência;
3 - Mas como em literatura mais importante do que o que se diz, mas sim, como se diz, a linguagem de Oliveira Neto é estruturada pelo dialogismo que busca reconstruir um real próprio a partir dos distintos imaginários que habitam as mentes de suas personagens, especialmente Dona Eugênia. E isso é feito por um texto em prosa, de ares dialogais, que em muitos momentos vai sendo atravessado pelo texto dramático, criações imagéticas de um Dona Eugênia que traz a literatura para a vida e leva e vida para literatura, nesse jogo dialético em que as coisas fundem-se sem fronteiras muito bem definidas;
4 - Os ares dialogais, contudo, não interferem no fato de que tudo é narrado prioritariamente em primeira pessoa pela própria Dona Eugênia, cuja imaginação parece-nos muito fértil e constituída das vozes ficcionais que a acompanharam durante a vida. Tais vozes em muitos momentos serão explícitas, e nomes como Valéry, Machado de Assis, Goethe eShakespeare especialmente, estarão sempre em suas lembranças, e reditos em sua própria voz, cujos textos sempre os repetimos;
5 - Todavia, mesmo numa narrativa aparentemente em primeira pessoa, o que encontramos aqui soa ainda a outra voz, a um Guimarães Rosa e seu sertão, mesmo que esta narrativa nada tenha a ver com as veredas sertanejas, e se passe em sua maioria do tempo nos espaço claustrofóbico de um apartamento à rua Nossa Senhora de Copacabana, vista pela janela e adentrando à narrativa pela cacofonia de seus sons. A lembrança de Rosa surge no fato que percebemos então que tal qual um Riobaldo que tem seu narratário particular, Dona Eugênia tem sua narratária, que por vezes impulsiona a narração com questionamentos pontuais;
6 - Ocorre que esta narratária liga no leitor a desconfiança. Percebemos então que Dona Eugênia está em uma espécie de entrevista, talvez um interrogatório. Seria a narratária uma policial? Uma jornalista? Quem seria essa pessoa que vai perguntando coisas que aguçam o sentimento de que algo ainda mais sério ocorreu (talvez aí nossa voracidade). Além disso, como dissemos, a narração de Dona Eugênia vai sendo invadida pela sua imaginação, as peças que escreveria, as estórias que compartilharia, uma delas, inclusive, invadindo com uma outra primeira pessoa, um novo texto dentro do texto, e mais uma vez o Fausto dentro do Fausto;
7 - Falando em Fausto, chegamos então à base da mitologia que estrutura a narrativa numa nova trama diabólica. Mas que diabo seria este e que Fausto encontramos aqui? Não é um Fausto óbvio, quiçá um Fausto recriado pela mente criativa da octagenária, pois que, em um único lapso no decorrer da narrativa coloca em dúvida a identidade real do jovem vizinho. Seria ele apenas o seu Fausto, o seu Fausto que a agrada, que ensaia peças, o seu Fausto a quem Dona Eugênia intenta em proteger e em criar com ele seus próprios imaginários;
8 - Aqui talvez a questão crucial da narrativa, o entrecruzamentos de linguagens e através disso o entrecruzamento entre o real e o imaginário. O que é real e o que fantasia Dona Eugênia, em sua criatividade explosiva. Tudo está construído em intensa ambiguidade, seria ela a sedutora a corromper a alma de seu Fausto ou ela a seduzida, a frágil senhora enganada pelo jovem e arrivista ator? São sintonias que o próprio leitor terá de fazer com suas escolhas, ao menos até as partes finais da obra, já que estas talvez indiquem ou falem mais do que ocorre, pois temos um final digno ao efeito do teatro, de grande impacto;
9 - Mas retomando a ambiguidade, vale dizer que se o diabo não mostra descaradamente suas verdes pernas, a relação fáustica não está morta, pelo contrário, habita as nuances, de tal modo, que não seria absurdo pensarmos nesse jogo sutil Dona Eugênia como um novo Mefistófiles. Uma nova Mefistófiles. Será? Quem seria a tentação e corrupção desse novo Fausto, talvez um Fausto imposto (lembremos o ato falho de Eugênia junto à narratária). Somando e subtraindo interpretações, o que nos resta dizer é que temos aqui um Fausto peculiar em nossa literatura, novo, não merá cópia, um Fausto que engole o mito original e regorgita-o por meio das elocubrações imagéticas de uma senhoria cuja simpatia pode esconder perigosas armadilhas;
10 - Enfim, Grito, de Godofredo Oliveira Neto, como dissemos, é leitura que flui vertiginosa. Estruturada no velho e contínuo mito, entrecruza vozes e linguagens em uma narrativa perigosamente onírica, carregada de implícitos e sugestões inesperadas que prendem seu leitor do princípio até seu final apoteótico e que garantimos, provavelmente você não espera. Uma leitura saborosa, sem dúvida.