10 Considerações sobre Intermezzo, de Sally Rooney ou a velha síndrome de Caim e Abel

O blog Listas Literárias leu Intermezzo, de sally Rooney publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou aquela velha questão desde Caim e Abel, confira:


1 - Percorrendo cenários irlandeses, de Dublin e Kildare ao interior representado por Leitrim, Intermezzo narra a estória de dois irmãos, Peter e Ivan, recentemente impactados pelo luto da perda do pai e as memórias de uma relação difícil, não apenas entre eles, cada vez mais distantes um do outro, como da mãe e de certa forma distantes de uma experiência mais amável da vida, já que ambos carregam amarguras o que, na narrativa amplia o distanciamento entre os dois protagonistas que por muitos momentos enxergam-se como opositores calcados num ódio visceral;

2 - Trata-se de um livro que necessitamos percorrer por suas distintas camadas, já que, superficialmente temos a estória de dois irmãos de vidas mundanas, do ordinário viver, mas que ao descermos dessa superfície, adentramos ao que é comum a todos nós, provavelmente, às camadas de tensão e reflexão que tentam encontrar alguma relevância nesse caos que é a vida, marcada por seus desencontros e incômodos capazes de tornar cada golfada de respiração em um conflito aterrador. É nesta posição de tensionamento da existência, da busca por "respostas" ou compreensão de suas jornadas pessoais que estão Peter, renomado advogado, cerca de dez anos mais velho que Ivan, um jovem de vinte e três anos com aparelho nos dentes e enxadrista em busca de reconhecimento. Compartilhando o foco narrativo entre os dois, a narração (a qual merecerá uma abordagem à parte) ao mesmo tempo que deflagra o distanciamento entre eles, radicalizado com a recente morte do pai, ao leitor vai distribuindo pistas que demonstram a plena perdição de ambos e os entendimentos falhos que cada um dos irmãos constroem na cisão que estabelecem entre si;

3 - Os dois, obviamente, são personagens muito distintos. Peter está na casa dos trinta e poucos anos e sua vida é marcada pelos contrastes paradoxais que carrega. Profissional exitoso, bem sucedido em muitas formas, ele surge fastiado da existência e das dores que esta tem lhe causado. Mantém uma relação complexa com Sylvia, ex-namorada de quem permanece muito próximo, mas cujo um acidente no passado inviabilizou a continuidade do romance. Em meio a isso Peter estabelece uma relação pouco convencional com a jovem Naomi, uma estudante sem casa ou grandes perspectivas. Não deixa de ser curioso como mesmo sendo jovem aos padrões contemporâneos, Peter exala uma crise de meia idade e cujo relacionamento - escondido - com Naomi aparece como elixir de contraponto a essa consciência de que está velho. Em meio às suas relações amorosas complicadas, há tumultuoso sentimento pelo irmão, a quem vê como esquisito;

4 - Ivan Koubek por sua vez é um jovem de relações sociais peculiares. Distante por vezes, é marcado por sua relação com o xadrez, que a despeito da sua tenra idade, já lhe causou decepções e fracassos que nesse campo também o fazem soar "velho". Apegado ao pai e com um sentimento refratário ao irmão mais velho, Ivan vive em certa solidão até conhecer Margaret, uma mulher mais velha, trinta e seis anos, com quem engata uma relação amorosa cuja natureza de ambos, causa alguns conflitos e medos. Ivan tem uma postura seca em relação à vida e às relações humanas, entretanto, perceberemos que talvez o problema estivesse menos nele que propriamente nas outras pessoas que não o compreendiam, já que com Margaret ele passa a soar menos estranho a si mesmo, Ainda assim, Ivan é peculiar no que se refere às relações humanas;


5 - Aliás, embora Peter mantenha relações não monogâmicas e mais viscerais no sentido carnal da coisa, será o relacionamento entre o jovem Koubek e Margaret que conceberá um caráter "caliente" à leitura, já que teremos no decorrer da narrativa passagens bastante eróticas; não de um erotismo gratuito, mas sim de um erotismo capaz de transmitir a quentura e a paixão pulsante entre Ivan e Margaret, ela que por sua vez, também representa a ideia de uma possibilidade de recomeçar de viver uma experiência mais positiva dos relacionamentos já que carrega traumas de seu casamento terminado. Com Ivan ela, ainda que receosa, permite-se voltar a viver;

6 - E a esta altura já podemos adentrar um aspecto interessante da narração e que torna o romance um belo trabalho estético com a linguagem, ao menos é a sensação que deixa transparecer a tradução. Falo da fluência e da forma vertiginosa que se manifesta o narrador (ou narradora) do romance. É uma narração da emergência. A narração em terceira pessoa, onisciente, capaz de penetrar à mais funda intimidade dos personagens, especialmente dos dois protagonistas e atua meio que em simbiose com a voz destes. Muitas vezes você quase não percebe quando a narração passa do narrador à Peter, Ivan ou ao mosaico de personagens do romance. A linguagem intercambiável a todo momento. Há um fluxo que flui com voracidade e que confere ao romance muita força narrativa;

7 - Além disso, a narração entrega-nos um efeito deveras interessante. Ocorre que ao tornar nua a intimidade de seus protagonistas o narrador acena há algo nem sempre lembrado de nós mesmos, o Eu à superfície, e o Eu iceberg, os pensamentos intrusivos, os momentos mínimos mas intemináveis de decisão, o quão complexo é o processo de comunicação entre humanos. Tanto Peter, mas especialmente Ivan colocam a questão da comunicação e dos desafios destas interrelações em grande destaque de modo que a narração põe em evidência o que em situações reais podem parecer despercebidas. Há uma multidão de sentimentos nos milissegundos em que tomamos uma decisão, em que escolhemos palavras e ações e esses momentos nas experiências e Peter e Ivan são postos em destaque;

8 - E são nesses elementos que encontraremos a grande relevância do romance, pois no restante teremos a saga de dois pensamentos martirizados pela mundanidade da vida. Nisso, o romance, embora não pareça, apresenta questões filosóficas, muitas, inclusive relembradas e citadas em uma nota ao final do romance. Isso na verdade nos leva a observar que toda a questão da narrativa está na forma como olhamos a nós mesmos e as nossas experiências humanas, os modos como podemos potencializar crises e dramas surgidos do grande desafio que é a comunicação humana, seja com os outros o com nós mesmos;

9 - Do mesmo modo, trata do peso que as pequenas e grandes frustrações podem conduzir a ideias perigosas ou a desencontros que se criam a partir das expectativas ou não cumpridas ou enganosas que criamos em relação aos outros. E talvez justamente resida aí a fragilidade de Peter e Ivan, que se por um lado expressam esses descaminhos e perdições, em ambos, com algum toque de irrealidade mostram-se conscientes (ou ao menos se descobrirão conscientes) aos erros que lhe cabem nos erros comunicativos interpessoais que cometem regularmente. Ocorre que na prática é sempre mais difícil encontrar Peter's e Ivan's capazes de postular suas contrapartes no erro, de problematizarem a si mesmos e encontrar algum reconhecimento na queixa do outro, o que de algum modo fazem, resultando inclusive no manifesto utópico ao final do romance que é a reaproximação possível de um Caim e Abel expressas em Peter e Ivan;

10 - Enfim, Intermezzo é ótima leitura. Um livro capaz de penetrar com alguma poesia nas maquinações da infelicidade humana e em suas desrazões, soando, inclusive, conciliatória ao final, de modo que equilibra-se entre o utopismo dos encontros e a ingenuidade de ainda acreditar que as raivas e os ódios internos podem ser suplantados por uma tomada de consciência dos próprios erros. Certamente, valeu nossa leitura, tão voraz qaunto o ritmo de suas páginas.

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