O blog Listas Literárias leu Búfalos selvagens, de Ana Paula Maia publicado pela Companhia das Letras; Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro; confira e descubra porque você precisa ver com seus próprios olhos...
1 - Inegavelmente Ana Paula Maia entrega-nos a literatura mais brutal de nossa literatura contemporânea. Seu universo brutalizante, erigido sobre noções arcaicas de uma ética marcada pela violência e pelo olhar primitivo de personagens masculinos cuja lei é a força e a atroz percepção que estão sós num mundo feito de carne e morte é o tom de Búfalos selvagens (terceiro livro da Trilogia do Fim, da qual ainda não lemos o segundo volume), assim como todo o conjunto de sua obra. No livro mergulhamos vorazmente no insólito mundo construído por Maia com aquela sensação de estranheza que nos provoca a boa literatura;
2 - Como dissemos, Búfalos selvagens é o encerramento da Trilogia do Fim, iniciada com Enterre seus Mortos e De cada quinhentos uma alma, entretanto é possível ler as obras individualmente, obviamente com alguma perda ou interesse por ler o que nos falta. Neste terceiro volume seus personagens característicos retornam ao matadouro do Milo. Guardam com algum pesar a memória da epidemia que assola-os no segundo livro e nessa retomada ao matadouro e ao hábito de matar, tão característico de Edgar Wilson, um homem bruto cuja a morte é antiga parceira. Enquanto retomam os negócios do matadouro de forma suspeita, um estranho circo chega ao lugar, um circo diferente, um templo, metáfora talvez das sandices contemporâneas e dos novos-velhos fanatismos, um lugar com apresentações de uma trupe que se precisa ver com os próprios olhos;
3 - Poderíamos começar nossas reflexões por estes peculiares personagens que habitam as obras de Ana Paula Maia já que eles, não apenas livros da Trilogia do Fim, aparecem em outras obras da autora; contudo, iniciaremos pelo espaço, pela ambientação que a autora entrega-nos, espaços familiares mas ao mesmo tempo dotados de um deslocamento que os retira de uma cartografia espelhada ao mundo real. Há algo de incerto no espaço, no ambiente em que se passam as cenas da narrativa, o que leva a obra a um campo que foge de qualquer realismo e adentra terrenos insólitos, estranhos, ainda assim, reais. Enfim, e pelo insólito e pelo estranho que se movem suas personagens, um insólito no caso deste livro que adentra o terreno do fantástico, até porque teremos passagens que evocam ao sobrenatural, talvez. E tudo isso confere uma força à obra pois ao mesmo tempo que nos desloca a esse terreno indefinido, também nos traz familiaridades dos espaços ermos, dos rincões que ainda existem ainda que importa-nos frisar que o universo ficcional de Maia se move sob regras muito próprias;
4 - Além disso, antes de prosseguirmos aos personagens da obra talvez seja interessante refletir acerca da genealogia da narrativa. Os livros dessa trilogia parecem-nos habitar espaços intermediários no que se refere aos gêneros literários, nos limiares do romance, do conto e da novela. Contudo, temos pensado que há muita proximidade dos mesmos com o conto, a despeito de ter lá suas cento e um pouquinho de páginas. E não temos tal impressão apenas pelo fato de ser possível lê-los numa sentada, como diria Poe, mas também pelos enredos centrados num acontecimento específico, o núcleo reduzido de seus personagens... Búfalos selvagens acentuou nossa impressão de termos em mãos contos, ainda que longos para a média do gênero. O conto, aliás, gênero em que o insólito e o horror encontrar ótimo caminho em suas proposições e visões de mundo a que se imagina refletirão seus leitores;
5 - Dito tais elementos, podemos nos dedicar aos personagens que acompanham Ana Paula Maia em suas narrativas. Tratam-se de personagens reconhecidos por seus leitores, Edgar Wilson, Tomás, um curioso padre que neste romances está bem "noiado" com suas respectivas situações e Bronco Gil, indígena com um olho só que nos lembra algum personagem de westerns. Os três aparecem noutras narrativas da autora e o universo de cada um deles é o do sangue, da carne e da morte numa educação pela brutalidade;
6 - E tais personagens são os principais responsáveis por transmitir a brutalidade que constitui as narrativas da autora. Neste universo insólito que habitam são personagens cuja existência dá-se pela lógica da violência. Homens brutalizados e brutos cuja ética remete a certo primitivismo naturalista. Assassinos para quem a vida não significa mais que o próprio processo de morrer gradativamente - e não é assim com todos nós? Sua histórias pairam sob certa névoa etérea, e seus modos de compreender o mundo se dá justamente pela bruteza desse mundo e ausência de qualquer esperança num possível paraíso. Os três ainda que não explicitamente apresentam uma percepção atroz, que estão abandonados, sem Deus, sem anjos, mas com muitos demônios em seus entornos;
7 - Aliás, o mundo é mal, bruto e violento. Essa é a mensagem que parece eclodir da narrativa. Todos habitam no espaço insólito da obra uma espécie de purgatório onde todas as almas estão condenadas ao sofrimento. Ou seja, é mais fácil encontrar demônios que a salvação, olhar recorrente na literatura brasileira erigida sob os traumas sociais que nos fraturam
8 - No fundo, são os personagens de Maia, medonhos. Possuem um olhar para a vida e para a morte carregados de um fatalismo que torna a experiência não mais que uma passagem dolorosa, a despeito da força e da frieza com que enfrentam seus mundos hostis, desconfiamos que carregam na verdade tamanho medo e dor diante da constatação cruel acerca do que vivem e habitam; além disso, a despeito de uma aparente simplicidade primitiva em tais personagens temos a complexidade que torna tudo ainda mais perigoso, já que Edgar e sua trupe mostram-se sedutores, seus olhares embrutecidos poderão encontrar ecos em nós leitores, que a despeito de um radicalizado anti-heroísmo, surgem como heróis de um mundo difícil enquanto a bem da verdade, se olharmos atentamente, o modo como veem e concebem o mundo é um tanto quanto problemático justamente por se mostrar sedutor em toda sua violência e brutalidade;
9 - Justamente por isso a aproximação ao conto e ao horror funcionam bem nas obras da Ana Paula Maia. Isto possibilita o deslocamento de seus leitores e torna tudo mais intenso. Ler seus livros é atirar-se a uma experiência intensa, ainda que possamos às ficar em dúvida o quão essa espetacularização da violência pode levar-nos a reflexão ou levar alguns incautos à armadilha de ler tão somente um western tupiniquim com suas pitadas de horror; mas isso é outra discussão; aliás, falando em horror, as imagens do circo, já citadas aqui, são intensas e interessantes e, ainda, adentram ao contemporâneo que a partir da percepção - cruel para alguns - da ausência da proteção divina, possibilitam ao surgimento de novas seitas que seguem nessa procura infrutífera;
10 - Enfim, Búfalos selvagens é tudo aquilo que faz de Ana Paula Maia, Ana Paula Maia. Narrativas vertiginosas e concentradas num ambiente cuja lei é a violência. A morte, de certo modo dessacralizada, por seus protagonistas é a grande verdade que suas obras parecem atirar-nos aos olhos. Tudo isso reverbera em seu universo naturalista onde os brutos sobrevivem aliados a essa morte que nos animaliza e nos bestializa. Somos todos bestas, parecem dizer Edgar Wilson, Tomás e Bronco Gil, e por mais que suas condutas os afastem da civilização, ainda assim nos entregam coisas familiares de tal modo que muitas vezes simpatizamos com eles. Ana Paula Maia é aquela leitura que você precisa ler com seus próprios olhos.