O Blog Listas Literárias leu Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito publicado pela editora Alfaguara; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Poderíamos compreender Rio sangue como um mergulho no passado que tenta reencontrar e reescrever as raízes de uma nação hostil forjada pela viscosidade do sangue que escorre como rios que sangram os ermos e os sertões. Uma ida à profundidade dos mitos fundantes de uma nação cujo presente parece ressentir-se entender suas origens. Nesse movimento menos uma tentativa de entender esse passado, talvez, e muito mais a tentativa de descrever um presente etéreo que paira sobre a narração. Conte-me uma história, principia o romance em sua tentativa de propor e compreender nossos dramas e tragédias;
2 - Aliás, poderíamos dizer que a leitura do livro amplia nossa sensação que nossa literatura percebe as impossibilidades plenas do Realismo e começa a procurar de maneira mais ampla saídas que retomam nossos ensaios e aproximações ao insólito, ao fantástico, ao Realismo Maravilhoso, entre outras possibilidades genealógicas para tratar nossas querelas. Ao mesmo tempo que volta-se ao passado, narrado em grande parte no período colonial e na "fundação" dos nossos sertões, o livro não desconsidera o poder e o impacto dos mitos no processo formativo da nação, uma nação complexa e de tantas miríades e mitologias que se entrecruzam em processos pouco pacíficos de conquista, assimilação e também resistência, como veremos os ecos permanentes de suas culturas originais em personagens como a indígena Páscoa e a escrava Gogó;
3 - Em síntese a obra narra o desembarque de dois irmãos portugueses - e sua família - no Recife e a constituição dessa saga familiar que vai embrenhando-se no sertão, indo das benesses da Coroa ao fracasso dos engenhos e seus fogos mortos. É por meio de João e José e toda uma miríade de personagens que se entrelaçará a eles que percorreremos o período colonial e a base violenta da constituição de uma nação carregada de contradições;
4 - Não à toa o livro tem como título Rio sangue, a proposta é direta e explícita: a formação desse país deu-se por meio do sangue e de uma lógica sertaneja em que a força era - e é - a lei, esta feita por cada qual que se aufira nesse direito. Justamente por isso seus personagens principais andam à margem das hierarquias que teoricamente teriam de seguir, a Coroa, no caso de João e o Vaticano no caso de José. Ambos tornam-se criaturas malévolas de um sertão que se não cita textualmente, é de possível reconstrução: o diabo vige nos crespos dos homens. Assim, as redes de traições, intrigas e a guerra entre pequenas castas verificadas pelos sobrenomes de cada família trazem-nos um ambiente de guerra e hostilidade onde a morte espreita;
5 - A partir disso, Correia de Brito põe em movimento todas as redes de conflitos e etnias que foram nos formando. Um olhar que foge do olhar romântico e impreciso dos livros didáticos, que atiram a pá de cal sobre a forma pacífica da colonização portuguesa no Brasil. No romance retratos dos tantos genocídios e violências entre povos, da escravidão e toda sorte de desgraças e violências praticadas aos escravos e escravas ao dizimar das nações indígenas, representadas aqui por Páscoa, cujo povo jucá foi extinto sobrevivendo ela a partir de sua relação com José, que no futuro tornar-se-ia padre com uma grande prole de filhos e habitante do sertão, não por escolha, mas pelas forçosas da vida;
6 - Aliás, José parece-nos ser aquele que carrega as ambiguidades do sertão, do Brasil e do sertanejo. Calejado em experiências ao mesmo tempo que sobrevivente um fraco em tantos outros sentidos. Inclusive sua relação com a esposa Páscoa é uma das questões que problematiza a obra, do apadrinhamento da criança ao concubinato; a peleja contra carne e por aí vai. José é o ambíguo de uma formação miscigenada à fórceps, por uma violência que constitui cada um de nós;
7 - A esta altura precisamos dizer sobre a a narração do livro, dotado de capítulos curtos nomeados com o nome dos personagens que centralizam a ação em tais capítulos. Os leitores logo perceberão os movimentos feitos pelo aparente narrador em terceira pessoa que muitas vezes oferta-nos saltos temporais indicando sua real posição: vermos no desenvolver e em não muitas partes a existência de um narrador-romancista, um alguém que procura narrar suas origens ao mesmo tempo que busca a melhor forma de narrar, no caso uma forma que não esteja desgastada. O primo, que poderíamos supor o próprio autor, adentra em suas conversas com Dona Ritinha Leandro de Brito suas tentativas de escrever não apenas a história familiar, mas as estórias do sertão que lhe habitam a memória transmitida oralmente;
8 - Aliás, ao adentrar, na verdade invadir a narrativa que se faz até então, este suposto narrador entrará numa outra seara, nas searas teóricas que refletem das condições da literatura e da linguagem em representar aquilo que não está totalmente à luz. Sua busca apresenta-se também como busca pela forma, como declaração do poder dessas fabulações expressos em uma de suas aberturas capitulares "Fale ou escrevam nosso mundo é o que é graças a isso";
9 - E pautado por tal conceito é que os jogos de poder, as intrigas e violências constituintes de nossas raízes mergulham num universo quase mítico de nossa busca identitária. Identidade, questão irresolvida de nossa nação cuja literatura sangra as feridas de tempo em tempo. Por isso esse mergulho intenso nos mitos formadores de uma ideia, a de sertão, um sertão que é o mundo e em grande parte trata de todos nós, brasileiro. Ronaldo Correia de Brito parece querer fugir de ideias românticas, seja qual sejam elas, e ao passo que foge de uma estética realista, tenta entregar-nos um pouco do tenebroso real do tempo que narra e nos persegue e permanece, uma nação fatiada em facções cuja paz é uma impossibilidade, seja das oligarquias que nos dominam, ou das forças que se mantém às margens do Estado pautadas por leis próprias e violentas. Nesse caldeirão os que resistem como podem, levados por suas crenças e pelas distintas fés que os animam na tentativa de sobrevivência;
10 - Enfim, talvez tenhamos aqui uma espécie de anti-épico. Não há heróis, ou na melhor das hipóteses somos incapazes de perceber que o heroísmo esteja naqueles personagens às margens, Páscoa e Fabião, por exemplo, cada qual representante dos povos massacrados na ordem vigente que parece-nos persistir muito além. Ronaldo Correia de Brito em seu romance em sua viagem temporal tenta mostrar-nos as relações de uma nação e de um espaço geográfico marcado e amaldiçoado pelo sangue, o sangue como constituinte desse sertão bruto e brutal, máquina de devorar carne, carne que vem sendo moída ao longo dos últimos séculos. De certa forma o autor grita e reforça não há nada de pacífico ou heroico em nós, entre nós; tampouco em nossas raízes; mais que entender isso, precisamos reconhecer tais raízes para só a partir disso pensar, mas daqui para frente?