De mim para mim, 10 considerações sobre Doutor Fausto, de Thomas Mann

O Blog Listas Literárias leu Doutor Fausto, de Thomas Mann publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Publicado em 1947 no desalento do que restara de uma guerra que legou à humanidade seu maiores horrores, Doutor Fausto, de Thomas Mann não apenas é fruto deste tempo, mas fruto de uma longa jornada em busca de entendimento da identidade alemã, justamente por isso o mergulho  em um mito que se universalizou, mas cujas raízes estão na Alemanha: o de Fausto, o pactário com o Diabo. No romance, para além de seu pactário da hora, Adrian Leverkhün, a própria Alemanha como pactária com o Demo e cujo preço da alma de toda uma nação é a desgraça de um país que dançou com o Diabo e viu ruir toda a esperança;

2 - O romance traveste-se de biografia ao passo que seu narrador Serenus Zeitblon, um professor doutor em Filosofia, assume a missão de escrever a biografia de seu amigo e gênio musical Adrian Leverkühn tão logo sua morte em 1941. Aliás, os tempos na narrativa vão e voltam, com um Serenus que inicia sua escrita em maio de 43 , mas que, todavia, ao acompanhar a narrativa biográfica de Leverkühn percorrerá também desdobramentos da história, especialmente as duas tentativas alemãs de impor-se ao mundo da forma como foi. É justamente a ambiguidade de tais sentimentos, de um desejo de constituir-se uma nação e uma identidade e o perder-se na história que ambas tentativas ocasionaram é que narrador vai tentando refletir de modo lúcido e carregado da desesperança de quem vê a história impor-se com sua irracionalidade;

3 - Nesse sentido, um dos detalhes na narração de Zeitblon, assim como sua capacidade de refletir, principalmente a partir de sua condição de um sujeito que alinha-se como um humanista burguês, entre autocomiserações, por vezes exageradas quanto à sua condição de narrador, é a característica tanto de metanarrativa quanto de metaliteratura que Zeitblon confere ao texto. Soma-se a isso toda sua admiração ao biografado, com o qual partilhara certa intimidade, uma intimidade se não podemos dizer que não tenha sido recíproca, porém, sempre sob cláusulas contratuais do músico e artista marcado por toda sua excentricidade;

4 - Portanto, aparentemente o grande objetivo da narração de Zeitblon é biografar seu estimado e cultuado amigo. E tal objetivo permanece, obviamente, por toda a obra, entretanto, perceberemos no decorrer da longa narração, o interessante movimento é que ao mesmo tempo em que trata-se de uma narrativa que tem o foco em Leverkühn, como se o fundo histórico estivesse distante, mas que entretanto, correrá em paralelo com os acontecimentos da história. Nesse sentido, o olhar de Serenus é o olhar de quem vai sendo eclipsado pelo distópico. O desencanto e a desesperança que passa a observar os movimentos sociais de sua nação a cada momento vão se intensificando. A massificação das massas, a adesão à ideias tirânicas de seus líderes e cidadãos colocam-no na posição da sensatez sufocada, especialmente pelo fato de que o próprio procura entender essa busca da identidade alemã, contudo, não partilha do mesmo caminho;

5 - Aliás, há algo de assustador na leitura de Doutor Fausto nos tempos que hoje vivemos. Parece-nos que toda insensatez que lá acoça as reflexões de Zeitblon repetem-se de modo temerário neste princípio de novo século, o qual imaginava-se capaz de não atirar-se ao mesmo desatino das armadilhas dos nacionalismos e patriotismos radicalizados. Entretanto, a cada observação do narrador Serenus acerca da condição de sua nação no tempo que narra, poder-se-á transpor a um bocado de realidades presentes ou recentemente contemporâneas do agora. O afundar do narrador no distanciamento da festa nacionalista que mostrar-se-á violenta e solapadora da ideia burguesa de democracia, é o mesmo afundar que se vê hoje, claro, que com as condições do hoje. Entretanto, aqui estão a adesão irrefreada e impensada a essas ideias de massa, que no caso do narrador o distancia dos próprios filhos, adeptos da ideia nazista, entre tantas outras análises e descrições que ao leitor de hoje torna-se incapaz de deixar de perceber perigosas e temerárias similaridades;

6 - Ou seja, importa destacar que o romance de Mann faz dois movimentos e entrega-nos talvez seu objetivo principal: analisar, pensar, refletir de que modo as ideias e buscas por uma ideia de germanidade levaram aos grandes horrores do século XX. Até por isso, que de certo modo podemos dizer que o narrador Serenus faz esses dois movimentos, tanto biografa Adrian Leverkühn quanto a Alemanha. Constrói aí dois pactários, e como o é na narrativa dos pactários a desolação do desfecho, o preço a ser pago deve ser visto como espécie de ato pedagógico, a transmissão de um alerta e um ensinamento... curioso que a pensar isso, Mann a seu modo inclusive corrige as preocupações de seu compatriota Walter Benjamin que percebe certa crise do romance a partir do silêncio provocado pela Primeira Guerra. Mann evidencia que o gênero não morre na grande tragédia, no máximo traveste-se de "falsa" biografia;

7 - Nesse sentido, nada mais próprio da germanidade que sua relação com o demônio e com o mito que nela nasce, ainda que, hoje, mito de uma universalidade. É nessa Alemanha em constante flerte entre luz e sombras, entre Deus e o Diabo que o mito de Fausto surge e se espraia pelo mundo e é solidificado com Goethe e Marlowe. Aliás, Mann parece-nos resgatar o mito para suas terras - uma "vingança" pela derrota? - pois ainda que a obra de Goethe esteja na sua composição, é na fonte, é nesse portal estabelecido com o século XI (aliás, andamos incomodados como quanto e tudo parece-nos levar a esse tempo, a Idade Média, em especial o século XVI), que Leverkühn irá usar de muito em sua cantata ao Doutor Fausto. Na verdade não apenas Leverkühn, mas Mann por meio de Serenus também voltará ao Fausto (que não chamaremos de original, mas aquele que se mostrou indispensável no estabelecimento do mito) de Spies, inclusive reproduzindo a seu modo a despedida final do pactário a seus amigos, em Mann bem mais tensa e tenebrosa que na obra cujo objetivo era servir de exempla aos ideais protestantes;

8 -  Nesse sentido, inclusive, reside os grandes desafios do leitor ao se entregar a esta narrativa. É ficção, mas ficção embrenhada de filosofia, teologia e teorias que demandam do leitor grande erudição. O romance é expressão de intelectualidade, até porque suas personagens o assim são, seja seu narrador, seja o objeto da biografia. Isso significa dizer que ao leitor pede-se um pouco de localização quanto, por exemplo, as ideias protestantes que tanto caracterizam seu narrador e toda uma teologia que perpassa a cristandade. Do mesmo modo, o conhecimento básico do processo histórico também pode colaborar com a leitura dessa tragédia fáustica que transformou-se numa das principais do gênero no século XX;

9 - Além disso, sequer adentramos ao que é essencial na vida do biografado que teria feito um pacto com o demônio, a cultura e a música. Gênio recluso, Adrian Leverkühn é um compositor que pelas letras de Zeitblon entrega-se a uma carreira de linear progressão compondo músicas até aquela que o biógrafo considerará sua magnum opus: a Cantata do Doutor Fausto. Inclusive podemos dizer que o narrador atua em sua escrita para mostrar elementos que reforçam a construção mítica do compositor a partir de passos e aproximações com o tema que não poderia resultar senão em sua cantata demoníaca. E ao adentrar o campo da música e da cultura, a teoria também verterá pelas páginas do romance tratando de um Leverkühn que a despeito da Modernidade que chega e do Romantismo que finda, irá beber lá no Barroco. Aliás, se algo podemos aprender com Leverkühn é da intencionalidade do artista, o artista que contesta e propõe, que fratura fronteiras... enfim, o romance é ainda um longo percurso pela música, em sua raízes teóricas o que faz do livro uma leitura, como o dissemos, de grande exigência;

10 - Enfim, certamente nesse breve espaço de um post em blog somos incapazes de tratar todos os aspectos de uma obra que integra pilares essenciais na compreensão e entendimento dos movimentos humanos na trágica linha da história. Mais do que a narrativa sobre o indivíduo que pactua com o Diabo, é alegoria da insensatez trazida pelo olhar de alguém que sucumbe à inação. Na verdade, não poderíamos falar de inação, o olhar desalentado de Serenus ao seu presente, ao passado e ao futuro tão incerto é o olhar dos lúcidos mas incapazes de agir diante da movimentação das massas, é da incapacidade de qualquer ação mediante a irreflexão humana diante das paixões despertadas pelas ideias que nos atiram aos instintos primevos. É o olhar de quem não celebra a guerra mas o sabe impotente diante dela. Não deixa de ser o olhar nublado diante do fracasso das ideias humanistas, mas que a despeito do horror, segue fazendo o que lhe pode, no caso de Serenus, seu refúgio é a dedicação à biografia do amigo - a quem idolatra - uma biografia que ao cabo é alegórica da tragédia nacional.

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