Sorria, meu bem, sorria... 10 considerações sobre O nome da rosa, de Umberto Eco

O blog Listas Literárias leu O nome da rosa, de Umberto Eco, publicado na coleção O Globo (2003). Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Erigido nas lacunas do processo históricos e na criatividade e filosofia de seu autor, O nome da rosa reúne importantes pontos de interesse, das questões filosóficas e teológicas à história medieval da cristandade em seus capítulos mais sombrios, tudo isso numa carapaça de romance policial, gênero tido como menor, mas cuja estrutura aqui serve de alicerce à profundas e complexas reflexões;

2 - Para narrar sua tal jornada pelo medievo, Eco dá então dois passos, o primeiro, uma narrador impessoal na breve introdução "um manuscrito naturalmente" temos a informação do que se narrará a frente trata-se de um misterioso manuscrito escrito por um desconhecido monge, aprendiz, que narra eventos aproximadamente por volta dos 1.320. Daí em diante, num formato peculiar e condizente com uma voz de tal época, toda a narrativa será narrada por Adso de Melk sobre os estranhos eventos que sucediam na misteriosa abadia;

3 - Nesse sentido, é possível dizer que Umberto Eco entrega-nos uma narrativa em "dois planos". O tempo presente-memorialístico em que narra Adso, anos após sua estadia na Abadia, rememorando os sete dias de ação vertiginosa e gradual em que ele testemunha a instigação empreitada por seu mestre, Guilherme de Baskerville e o plano histórico em que o autor usa para introduzir personagens reais às suas fictícias num amálgama bastante convincente. Além disso, o plano histórico não deve ser perdido de vista, pois que serve não apenas para abordagem do período, mas também para a explanação do olhar do autor acerca do tema;

4 - Isso porque o que leva Guilherme e Adso à misteriosa e erma abadia chefiada por Abbone - retirada das cartografias oficiais - é justamente o plano histórico em que Guilherme terá parte numa negociação que visa mediar junto ao Papa João XXII a questão dos franciscanos, ordem a qual pertence Guilherme e a figura histórica de Michele de Cesena e o frade Ubertino. É justamente nesse encontro da ficção fadado ao insucesso que Eco faz uso para abordar o papado de João XXII, sua perseguição aos franciscanos e outras ordens, aos heréticos, etc. e a toda nefasta política papal. Nesse sentido, enquanto romance histórico, Eco nos dá uma visão e revive por seu olhar aqueles perigosos tempos;

5 - A bem da verdade, Guilherme de Baskerville ao cabo será impregnado por uma voz mais contemporânea, dotado de um forte ceticismo e intensamente marcado pelas luzes e pela razão. Trata-se de um homem da ciência e mais especialmente da filosofia o qual nos é construído pela voz testemunha de seu discípulo, Adso. Mestre da lógica, dos silogismos e experiente na arte da dedução, capaz de fazer sombra a um Sherlock Holmes, em sua chegada à abadia, Guilherme será incumbido de uma investigação fundamental não apenas na tentativa de salvar monges que começam a morrer de forma misteriosa, mas ao próprio e relevante encontro político das partes. E aí entra os ares de narrativa policial do romance de Eco;


6 - Todavia, não se trata de narrativa policial, ainda que certamente tenhamos um investigador em ação e crimes a serem solucionados. O gênero preza geralmente pela simplicidade e pelo ritmo, o que não é a escolha de Eco, que não apenas faz uso de uma linguagem levada ao tempo em que se narra, mas como a inserção de trechos em latim, que no caso do romance são essenciais (aliás, poderíamos abrir uma frente de estudos só para dialogar como Eco, linguista que era, representa a relação entre língua e poder a partir da ascensão do vulgar) pois no plano da ação os casos levam Guilherme e Adso a uma jornada pela escrita e pelos livros da humanidade, visto que, tudo parece levar à questões envolvendo a misteriosa e rica biblioteca da abadia, seus monges copistas, bibliotecários, entre outros;

7 - Os livros então, a partir disso passam a ganhar centralidade numa trama que já tem seus tantos planos relevantes. Pode-se dizer que Eco não apenas representa o modo como até então o conhecimento e a sabedoria era mantido, mas acima de tudo o valor e os poderes engendrado nessa cultura, bem como, questões mais filosóficas a respeito da guarda, da conservação ou mesmo da publicação das ideias;

8 - De certo modo, Umberto Eco, um dos pensadores mais doutos e relevantes dos tempos recentes, parece-nos por meio do gênero criar certa sedução para que leitores adentrem a questões mais complexas e profundas do pensar. Se de um lado temos aproximação aos romances de gênero como o policial e o histórico, sempre atrativos, mesmo a descrição de costumes contraditórios das culturas - sendo a abadia uma alegoria das sociedades, por outro, por meio das tergiversações de Guilherme e Adso e mesmo em determinados momentos pela boca de certos antagonistas da narrativa, o autor adentra à questões teóricas e conceituais complexas e extremamente filosóficas que expressam a dialética de Eco em seu olhar ao mundo;

9 - Assim, o filósofo Eco mostra-se ainda mais forte nas páginas finais da obra (ainda que a filosofia esteja presente em toda a narrativa), quando o que não era para dar certo já não deu certo e o plano da ação abre-se então às principais teses que encontraremos no romance: as consequências nefastas do fanatismo em torno da verdade: Teme, Adson os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo". Tal frase poderia servir à toda à representação que faz o autor de João XXII. E essa questão está ligada à outra, ao espaço, ao lugar do riso entre os homens, e este segundo diretamente relacionado ao plano de ação e à morte misteriosa de monges. Aludindo a um possível livro perdido, Eco também entrega-nos sua própria tese sobre o riso - visto que o livro perdido perdido está e é criado a partir do livro que achado e conhecido por todos o é - e para além dessas duas coisas e inefável questão humana há tempos e identificador do pós-moderno, a existência de Deus?

10 - Enfim, O nome da rosa é destes livros com que você precisa se encontrar algum dia. Usando sua roupagem de romances populares Eco nos possibilita diferentes e importantes questões para análise e interpretação (e nem abordamos aqui o olhar do autor para com os simples). Rico em referências históricas e fruto da erudição de seu autor, a narrativa embrenha-nos em questões filosóficas, muitas delas marcadas pela inserção do discurso religioso (algo que não falei aqui é que o romance parece concordar com certas teses franciscanas) e a indagação quanto à propriedade da verdade. No fundo, é sobre essa questão central que se constrói a misteriosa abadia, o controle do conhecimento e o controle da verdade, verdade esta ditada por quem tem a propriedade do poder, já que é justamente o temor desse controle, do controle da verdade ou da verdade permitida que desencadeia desordenados eventos no plano da ação do romance. 

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