10 Considerações sobre Os demônios, de Fiódor Dostoiévski ou do império da fofoca...

O Blog Listas Literárias leu Os demônios, de Fiódor Dostoiévski publicado pela editora Martin Claret; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou sobre o império das conversas em meio-termo. Confira:


1 - Destes romances que surgem diante dos leitores como fato que acontece, tamanha imersão que nos propõe, Os demônios para além da questão russa, as percepções de Dostoiévski antecipa muitos dos horrores dos tempos modernos, trata-se de uma narrativa que procura perscrutar a "alma" humana em suas idealizações, suas ideologias, crenças e fanatismos. É, bem da verdade, um tratado de como podemos num conjunto social permitir e fazer acontecer dos piores acontecimentos;

2 - Ambientado para os idos finais do século XIX, o romance tem como espaço um pequeno vilarejo no interior da Rússia onde vivem seus distintos círculos sociais sob as sombras de Moscou e Petersburgo, dos ideias revolucionários e socialistas - os quais a narrativa procura alertar possíveis descaminhos - tudo isso impregnado das ideias e construções conspiratórias numa nação acostumada a comunicar-se e a utilizar-se da linguagem por meio de subterfúgios;

3 - E aqui temos o elemento que pobremente chamamos de "império da fofoca". Entretanto, é um bom exemplo de como se dão as comunicações entre as personagens do círculo social daquela respectiva comunidade. A "fofoca", os não-ditos, os meio-termos, a ambiguidade e a dissimulação é constituinte das personagens, que considerando os aspectos culturais da nação, fala de um jeito sempre desejando dizer justamente outra coisa. São essas comunicações e interações ambíguas que não só abastecem os mal-entendidos, como também funcionam e colaboram para as teias conspiratórias que se tecem ao fundo dos acontecimentos até o ápice da tragédia, ao final do livro;

4 - Aliás, embora dividido em três partes, "as crônicas", como descritas pelo narrador desde o princípio caminham num só sentido, o de narrar "eventos recentes e tão estranhos" ocorridos na cidade, que sem pecar por spoiler (clássicos não têm spoiler) podemos dizer que encaminham a mortandade que ocorrerá em suas últimas páginas, auge das maquinações que vão sendo engendradas lentamente por personagens misteriosas que movem-se às sombras com intenções de sacudir os alicerces do sistema vigente. Todavia, se há, nesses grupos, aparentemente ideais revolucionários embebidos ainda no que ocorrera na França, Dostoiévski pincela tais personagens com nefastas cores, visto que tais figuras são lacaios e escória de pior espécie cuja condutas, na verdade não passam de ambiciosos políticos com intenções de substituir uma força por outra;

5 - Esse é um aspecto que não podemos negligenciar na leitura do romance, trata-se de uma obra para mais que desconfiada dos novos ideias, escreva-se, o socialismo. A revolução. Há no olhar de Dostoiévski algo visto no que o precede e o que o sucede, o rescaldo de violência, morte e sangue no decorrer desses processos. Nesse sentido, o pequeno vilarejo pode servir como alegoria a toda nação que enfrenta suas revoluções. Não seria exagero dizer que trata-se de uma narrativa antirrevolucionária, oposição que é feita com argumentação sólida no decorrer da ficção. Na verdade, o autor retira da revolução a capa utópica que geralmente a serve. Obviamente o faz sob sua perspectiva, de modo que podermos ver como descreve seus revolucionários no interior do romance, artifício que certamente copta leitores para sua tese. Obviamente, há revoluções e revoluções (ainda que, realmente em grande parte elas se perdem), contudo, ao colocar a revolução aos cuidados de Piotr, Chatóv e outros, Dostoiévski compartilhar seu olhar e os tipos que julgam couberem em uma revolução;

6 - Todavia dizer que o livro seja apenas antirrevolucionário ou anti-socialista (o que o é) talvez reduza muito o olhar do autor. Há nessa sua cautela aos movimentos de massa, aos espectros que rondam a sociedade, às novas ideologias, às ovas gerações, uma cautela subjacente ainda maior: uma cautela para com o fanatismo, combustível essencial de todas as violências. Nesse sentido, o romance, ao descrever o grupo conspiracionista do romance analisa os tipos que seduzem-se por tais ideias e por determinados poderes. na verdade, se bem analisarmos, a constituição das figuras que comporão o grupo local reúne tipos que ascendem em tempos nebulosos, sejam os autoritarismos à esquerda, sejam os autoritarismo à direita. Ocorre que justamente a utopia de uma revolução pode facilmente sucumbir a uma ação reacionária perpetrada por aqueles que nada tem a perder;

7 - E aí precisamos dizer que no romance o reacionarismo prevalecerá. Tornar-se-á nítido ao leitor que ao grupo conspiracionista há tão somente a esfacelação do poder vigente e do sistema em voga. Não há projeto para além, observam a destruição, apenas. E para isso, encontraremos por meio das personagens conspiracionistas a construção de um manual prático das convulsões sociais. Não é um grupo revolucionário, a despeito das aparências. São reacionários que literalmente desejam colocar a cidade em chamas, desacreditar os ordenamentos existentes. O objetivo individual, ter poder, ascender, o coletivo levar pânico, morte, violência... o curioso é que o manual dos supostos conspiradores socialistas do romance servem a qualquer lado, inclusive, veremos métodos semelhantes aplicados recentemente no Brasil, e nos recentes golpes impetrados;

8 - Vejamos que não é fácil escapar dos aspectos políticos na interpretação desta obra. Sua essência é política, até porque o universo de fofocas e cuidados é justamente empregado também na manutenção do status quo. É para manter as aparências e seus espaços sociais que a nata social habitante do círculo romanesco descrito por Dostiévski movimenta-se por esse jogo de poder manifestado pelas ambiguidades e pelos acordos permeados de não-ditos, como a relação  de Stepan Trofímovitch e generala Stravoguin;

9 - Antes de irmos ao fecho de nossa avaliação (e olha que deixamos de lado os aspectos filosóficos presentes no romance) gostaríamos contudo de destacar a figura do narrador do romance: Anton Lavrêntievitch. Trata-se de um servidor público, do qual, muitos segredos e mistérios pairarão sobre ele, afinal, ele pouco se desnuda. Amigo íntimo de Stepan Trofímovitch inicia a narrativa numa falsa modéstia quanto a sua capacidade de narrar. Por um bom tempo ele se manterá muito discreto, quase soando um narrador em terceira pessoa. Da metade em diante sua natureza de narrador se mostrará mais explicita, muitas vezes ele, inclusive, comunicando-se com o leitor. Falamos do narrador aqui, porque é relevante, especialmente no sentido de tratar de seus avanços, às vezes, no mínimo, complexos a um narrador testemunha. Perceberemos no decorrer da narrativa que reconstrói os acontecimentos em suas crônicas, e aí há um detalhe. São crônicas reconstituídas, de modo que muitos dos eventos o narrador por impossibilidade não está presente. A bem da verdade ele completa lacunas (muitas vezes isso fica mais explícito em sua voz), remonta como um quebra-cabeças os acontecimentos estranhos que perturbaram a cidade. Além disso, por vezes, atribui-se tentativas de onisciência, possível apenas num narrador em terceira pessoa. Ainda que fique claro que são conjeturas, já que não pode penetrar os pensamentos "efetivos" das personagens. Não sei se chegaríamos ao ponto de dizer tratar-se de um narrador problemático, contudo, é importante ao leitor a compreensão dos limites que são ultrapassados por ele;

10 - Enfim, tratamos nesse post, em grande parte dos aspectos políticos da narrativas, mas há muitas outras portas para interpretação desse significativo romance, por exemplo, a leitura de Camus sobre o suicídio lógico a partir de Kiríllov, o niilismo, a natureza do mal... enfim, não faltam caminhos para interpretar este romance que sem dúvida alguma é destas leituras que em algum momento da vida precisamos enfrentar, até porque, muitos dos dramas e das angústias ali presentes persistem entre nós.

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