10 Considerações sobre O demônio de Frankfurt, de Ferrèz ou quem será o Abúlico?

O Blog Listas Literárias leu O demônio de Frankfurt, de Ferrèz e com ilustrações de Lourenço Mutarelli publicado pela editora Comix Zone; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira: 


1 - Mix de metaliteratura e autoficção, O demônio de Frankfurt narra por meio de vozes autênticas - afinal, trata-se de autores que lá estiveram - um dos momentos recentes mais polêmicos de nossa literatura: a presença e a homenagem ao Brasil na tradicional feira de Frankfurt de 2013, quando 70 autores e autoras brasileiras foram levados pelo governo ao evento, fato que gerou uma série de discussões, polêmicas e indagações;

2 - Vale destacar, enquanto aparte, o fato de o evento e da participação ocorrer num dos anos mais complexos e contraditórios de nossa história, 2013, ano de confusão em que muita gente tida de esquerda reclamava de tudo - a despeito do governo de esquerda -, que viam com bons olhos uma série de manifestações com indignação a tudo mas que ao cabo foi o maior combustível para ascensão da extrema-direita, do golpe e retrocessos que viriam. Nesse contexto, é de se pensar que o que deveria ser um momento de aproveitar a ascensão brasileira, virou também um muro de lamentações, não vai ter copa, não vai ter feira, não vai ter futuro, 2013 foi um ano de extremo pessimismo, e de certo modo a participação do Brasil em Frankfurt não saiu ilesa desse contexto;

3 - Mas disto isso, retomemos ao livro, afinal, nele acompanhamos uma narrativa que mostra-se justamente com essa intenção: narrar a participação de dois dos mais emblemáticos autores da literatura brasileira contemporânea: Ferrèz e Lourenço Mutarelli. O livro ficcionaliza a estadia dos dois em Frankfurt e, claro, joga com essas possibilidades, legando ao leitor a permanente dúvida entre o que é biografia e o que é ficção, algo comum no trabalho dos dois autores;


4 - Nesse sentido, temos um narrador em terceira pessoa e diálogos fragmentados que por vezes mesclam as vozes narrativas, outra tática comum, especialmente em Mutarelli, que vai narrando as desventuras e aventuras de Lourenço Mutarelli (Lou) e Ferrèz (Fê) pelas ruas de Frankfurt. O movimento frenético dos dois em cena joga com elementos constituintes da imagem dos dois autores, como o abuso da bebida de Mutarelli, a pouca paciência de Ferrèz, etc...

5 - Nesse vai e vem que ficam os dois pelas ruas e salões de Frankfurt a ação aparentemente concentra-se no vício de ambos por aquelas máquinas que sorteiam brinquedos de tal modo que uma demônio de plástico - ou não - passa a ser a grande busca de ambos; entretanto, enquanto a ação se desenvolve, cremos, num plano ao fundo, mas talvez mais relevante, a obra a seu modo discute ainda que na superfície, os cenários do mercado editorial brasileiro;

 

 6 - E nossa percepção mais relevante é compreender o sentimento de não pertencimento de Ferrèz ao meio e mesmo certa imagem de intruso que parece transmitir a narrativa (aliás, vale dizer que essa narrativa é publicada pela própria editora do autor, significativo). Em meio aos diálogos dos personagens Lou e Fê, aos poucos vamos observando a forma como lidam e mesmo como, a partir da narrativa, eles são tratados em diferentes momentos e segmentos do mercado;


7 - Além disso, essa questão do não pertencimento, a despeito da participação de ambos no seleto grupo dos 70 (que gerou uma série de desentendimentos, desgostos, frustrações e retaliações como a de Paulo Coelho) é reforçada na autoinclusão de ambos enquanto "cota social". Na verdade, a narrativa estabelece um movimento de bastante crítica. Há certo isolamento na dupla protagonista que nesta breve novela relaciona-se com pequeno grupo, que colocam-se enquanto estranhos do sistema, do mercado, enquanto há uma outra literatura, das camisas bem passadas, das referências e dos academicismos os quais Lou e Fê parecem querer se distanciar - ainda que no livro, Mutarelli mantenha o mantra de afastamento dos quadrinhos e de sua boa recepção na literatura;

8 - E tal cisão é mais bem demonstrada através do Abúlico. Sério, não há coisa maior que o livro instaura em seus leitores que a curiosidade em querer saber quem, desgraça, é o tal Abúlico. Essa é a saída crítica encontrada pela narração, o uso de apelidos pejorativos para não identificar os lados opostos de uma literatura nacional. O tal do Abúlico é pedante, arrogante e pretensioso, representante do que a narração chamará de alpinistas sociais, grupo cuja impressão da narrativa inclui grande parte dos participantes levados. A bem da verdade, é que a narração poupa poucos autores, nomeados pelo nome próprio no decorrer dessa autoficção, nomes próximos de ambos os autores. Ao cabo, o restante é trazido por meio de metáforas e alegorias um tanto críticas, que de certo modo, enquanto leitores, nós mesmos, aqui nesse blog, meio que já tratamos dessas duas contrapartes de nossa literatura contemporânea: uma parte que realmente faz literatura embebida na vida e nos mais contraditórios processos da vida e uma outra parte que mais escreve teses acadêmicas disfarçadas de literatura que o contrário;

9 - A questão é que, ao cabo, a presente narrativa a seu modo desnuda certas contradições do sistema, do mercado e de nossa própria constituição. Não significa dizer que todos os olhares de Ferrèz sejam acertados ou certeiros, entretanto, é perceptível que o não pertencimento a sensação de invasor que parece sentir é construída a partir de exemplos e passagens descritas que denunciam as contradições de um meio e de um mercado a despeito de seu aparente progressivismo, atua em muitos momentos sob a lógica de nossas desigualdades e preconceitos. Isso é o que parece instituir essa perigosa sensação do Nós (ou o Eu) e os Outros que a obra estabelece;

10 - Enfim, há vários perigos em se analisar O demônio de Frankfurt. É muito tentador ao leitor concentrar-se na amizade desses dois escritores, perder-se na aparente frugalidade de dois marmanjos em busca de brinquedos de 20 cents de Euros ou mesmo focar demasiadamente na memória de um autor cuja experiência será trespassada pelo trauma da violência, lógica de sua origem. Essa memória, que sim, é forte e surge muito intensa em partes do livros não pode ser desconsiderada, entretanto, não cremos que seja o maior alerta crítico da noveleta. No fundo temos aqui um desenho um tanto problemático e bastante severo para com o mercado editorial. No fundo, parece que Ferréz pretende gritar que muitos, muitos dos que estavam lá, aqueles que sempre ganham atenção de editores - leitores quiçá - são uns bostas, uns abúlicos pedantes e alpinistas que fazem da literatura um pequeno círculo de privilegiados sociais, um círculo cuja percepção de Fê e Lou, aliás, é olhar feio o desconhecer a ambos. E isso, amigos, é fogo no parquinho. Terá razão Ferrèz nesse olhar duro e cheio de julgamentos? Cremos que ele tem um pouco mais de condições que nós para insinuar tal coisa - tem lugar de fala -, e essas insinuações ou mesmo denúncias que faz por meio desse jogo complexo e ambíguo de misturar ficção e biografia é um tanto sério. Nesse sentido, temos aqui uma narrativa que a despeito de seu aparente caráter de brincadeira diversionista, coloca em pauta uma problemática a ser debatida. Mas quem debateria isso? Pensamos que o Abúlico e seus pares não estão dispostos a isso...

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