10 Considerações sobre Maus, de Art Spiegelman, o livro censurado nos Estados Unidos da América

O Blog Listas Literárias leu Maus - História Completa, de Art Spiegelman publicado pela Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras (livro vencedor do Prêmio Pulitzer); neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Publicado originalmente nos anos 70 (Volume I) e 80 (Volume 2), Maus, de Art Spiegelman foi um grande sucesso de público e crítica, recebendo, inclusive, o prestigiado Prêmio Pulitzer. A história em quadrinhos resgata a história familiar de Spiegelman, narrando a história de seus pais durante o Holocausto, sendo desde então, considerado importante documento de memória desse nefasto momento da história humana sobre o planeta. O livro, consenso de crítica, nestas voltas que o mundo dá, foi mais uma das obras a sofrer com a nova ascensão do nazifascismo deste século XXI sendo proibido em diferentes escolas norte-americanas; nisso uma pergunta que não quer calar, afinal, porque censurar uma narrativa acerca do holocausto? Qual o interesse nisso? Neste post, compartilhamos nossas considerações sobre o livro, algumas, talvez joguem luzes sobre esta terrível onda de retrocesso que temos vivido;

2 - Como dissemos, Maus trata-se de uma história em quadrinhos pela qual, seu autor, de modo um tanto íntimo e pessoal tenta entender o holocausto a partir da memória e da vivência de seu pai, Vladek. Nesse sentido, temos uma narrativa biográfica na qual não apenas as lembranças de Vladek reconstituem a guerra e o Holocausto, mas também a, por vezes, tumultuada relação entre pai e filho. De certo modo, podemos conceber a iniciativa de narrar a história familiar ao mesmo tempo um documento da história, mas também uma forma de Art lidar com seus próprios monstros ao tentar compreender os monstros do pai;

3 - Deste modo a narração vai sendo elaborada em camadas e tempos distintos, de um presente em que Art e Vladek encenam a própria criação da narrativa e a memória de Vladek reconstruída a partir dos encontros entre pai e filho. São essas memórias que trazem os horrores por qual passou Vladek e sua esposa, as perdas e as condutas de sobrevivência nem sempre as mais tranquilas. Esse passado revisitado pela memória que perceberá o leitor ascende sobre o Vladek do presente com muita força, porque, afinal, ninguém sai ileso ao tocar o horror de modo tão íntimo;

4 - Mas antes de falar sobre a por vezes problemática relação entre pai e filho, tratemos de como Spiegelman constrói seus quadrinhos. Em preto e branco e com traços muito precisos, o autor usa da zoomorfização para reconstituir a trama história. Nisso, usa de uma metáfora pessoal dividindo os povos envolvidos na narrativa através de animais, ratos (judeus), gatos (nazistas alemães), porcos (poloneses), cães (norte-americanos). Assim coloca-se - ou aos seus, já que Art vivencia a tragédia através dos reflexos do pai - enquanto caça dos gatos famintos cuja única disposição é aniquilar aos judeus; tal escolha estética sem dúvida alguma confere força e literariedade ao trabalho do autor;


5 - Talvez, contudo, há de se considerar que ao distinguir as pessoas através da zoomorfização com diferentes animais, Spiegelman reforça o ideário opressor da distinção étnica. Talvez seja difícil compreender como iguais podem ferir iguais com tamanho horror, e o que de fato somos, iguais, uma única espécie. Nos quadrinhos, essa diversidade zoomórfica com cada qual em seu quadrado, se por um lado auxilia na compreensão do espaço ocupado por cada um dos atores envolvidos no drama, por outro, mantém a ideia equivocada da diferença, ideia que subjaz à premissa dos nazistas ao considerarem-se superiores aos demais. Além disso, embora demande uma discussão mais longa que esse post, é interessante considerar as semioses contidas nas escolhas de Art ao constituir sua metáfora;

6 - Feito esse aparte, a metáfora, contudo, procura conduzir o leitor aos diferentes elementos em ação na tragédia vivenciada pelo pai do autor e acima da escolha de como retratar - ou desenhar suas personagens - está a força e o impacto da narrativa. Ela que conduz com firmeza a complexidade e a importância do trabalho, pois a narrativa procura, embora um recurso de construção de memória, estruturar-se em toda a complexidade que constitui os monstros que atemorizam o autor;

7 - Há no trabalho, então, primeiramente a tentativa de entendimento. É nisso, também, a história de pai e filho que precisam reconstruir pontes. Artie vive os reflexos da tragédia vivenciada pela família, tragédia agravada com o suicídio de sua mãe. Percebemos inicialmente o distanciamento com o pai e muitas vezes a incompreensão do filho para com as atitudes paternas. Há um desencontro entre ambos, desencontro que várias vezes toma forma na narrativa, enquanto os dois reconstroem a memória de Vladek dos fatos durante o Holocausto;

8 - E como todos os relatos do Holocausto, o de Vladek é desolador. Como chegamos a tal ponto? (hoje temos que perguntar, voltaremos a esse ponto novamente?). Ao narrar para o filho sua história, Vladek nos entrega a luta pela sobrevivência, uma luta que pode findar a qualquer instante - o que ocorre a muitos. Nessa memória, aos poucos vamos compreendendo as artimanhas e as sutilezas empregadas por esse sobrevivente em específico. Sua conduta é posta nua ao público e isso é um dos grandes valores do livro. Vladek, em síntese resiste, um minuto após o outro, um dia após o outro. Insiste. Resiste. Insiste e resiste com as armas que lhes são possíveis em meio ao mais desolador dos cenários, cenários que pelo traço do filho avivam nossa lembrança do terror. Talvez aí, a despeito das desculpas esfarrapadas dos censores contemporâneos, a principal justificativa para censurar uma obra dessas: ela não permite que esqueçamos o quão vil o humano pode tornar-se, a que tipo de coisas é capaz de infringir aos seus iguais;


9 - Aliás, outro dos bons valores do livro é que Spiegelman é feliz ao não idealizar as posturas e as personagens. Traz as contradições humanas pulsantes, como o relato do ato racista de seu pai em uma carona dada pela nora. O livro mostra a todos diante suas complexidades, contradições, o que significa trazer à tona também os aspectos negativos dos que protagonizam sua narrativa;

10 - Enfim, Maus é destas leituras imperdíveis. Faz com que não esqueçamos o ápice da maldade humana. Trata-se de um trabalho memorável construído a partir das memórias de um sobrevivente do Holocausto. Memórias que para além de reconstituir o passado tenebroso, tratam dos desencontros de um presente sob a égide do trauma. Um trauma que por vezes parece querer repetir-se num mundo que parece querer flertar novamente com o abismo.

:: + na Amazon ::


     


Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem